A
leitura do inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal permite identificar o
devido processo legal como o principal valor jurídico assimilado pela
Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 para caracterizar os modelos de
direito processual e de estrutura judiciária adotados pelo Brasil. Fala-se
nesses dois modelos porque seria
impossível cumprir a garantia constitucional do devido processo legal
sem a
concepção de uma legislação processual que compreenda as cláusulas
fundamentais da inafastabilidade da jurisdição, do contraditório, da
ampla defesa, da publicidade dos atos processuais, da motivação das
decisões judiciais, bem como um conjunto de direitos,
deveres e ônus titularizados pelos sujeitos do processo, a fim de que
todo
direito material ou processual possa ser tutelado pelo Poder Judiciário
com os
predicados da segurança, eficiência e justiça. Além disso, esse mesmo
superprincípio também exige que o nosso ordenamento legal conceba um sistema
judiciário cuja organização funcione de modo a executar concretamente o
paradigma de direito processual definido pela Constituição Federal. Longe
de serem inéditas, essas observações permitem a conclusão de que não há como
efetivar a garantia do devido processo legal sem possibilitar, mediante
recursos dirigidos a outra instância judiciária, a revisão das decisões
emanadas do primeiro grau de jurisdição, quando estas forem suspeitas de error in judicando ou error in procedendo, pois é certo que a criação de restrições indiscriminadas ao direito de
recorrer ao segundo grau de jurisdição aniquilaria uma significativa parcela
dos atributos que o processo judicial precisa reunir para ser considerado
devido. Por esse motivos, ninguém pode duvidar que o duplo grau de jurisdição constitui um
valor congênito ao princípio constitucional do devido processo legal, conclusão esta a que também
parece haver chegado eminente ministro ADHEMAR FERREIRA MACIEL (O Devido Processo Legal e a Constituição Brasileira de 1988. Revista de Processo, São Paulo, ano 22, nº 85, 1997). Em
reforço a essas considerações, é importante observar que o artigo 92 da
Constituição Federal empregou sucessivas vezes a mesma fórmula ao instituir os
juízes e os tribunais regionais federais, os juízes e os tribunais do trabalho,
os juízes e os tribunais eleitorais, os juízes e os tribunais militares, os
juízes e os tribunais dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios,
fórmula essa que constituiu diferentes graus de jurisdição justamente para
poder concretizar o imperativo constitucional contido no inciso LV do artigo 5º
e permitir a revisão das decisões judiciais, notadamente daquelas proferidas no primeiro grau de jurisdição. Mas
as evidências da natureza constitucional do princípio do duplo grau de
jurisdição não se esgotam nessas constatações. Com efeito, perceba que a
Constituição Federal possui vários dispositivos que disciplinam as competências
dos tribunais e não esconde a preocupação de proporcionar o acesso dos
jurisdicionados a uma segunda instância judiciária para a revisão das decisões
resultantes do primeiro grau de jurisdição. Com
efeito, na aliena “a” do inciso II do artigo 102 o texto constitucional defere
ao Supremo Tribunal Federal a competência para julgar o recurso ordinário
manejado contra decisão denegatória de habeas-corpus, habeas-data, mandado de
injunção ou mandado de segurança da competência originária dos tribunais
superiores, vale dizer, quando estes tribunais atuarem como órgãos judiciais de
única instância no julgamento dessas quatro ações constitucionais. Já
a alínea “b” do inciso II do artigo 105 da Constituição da República atribui ao
Superior Tribunal de Justiça a competência para julgar recurso ordinário interposto
contra decisão denegatória em mandado de segurança decidido em única instância
pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Isso
significa que também se insere nas funções do Superior Tribunal de Justiça o
exercício de competência típica de um órgão judicial situado no segundo grau de
jurisdição. Por
sua vez, o inciso II do artigo 108 da Constituição Federal confere aos
tribunais regionais federais a competência para julgar, em sede de recurso e no
segundo grau de jurisdição, as causas decididas pelos juízes federais e pelos
juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição,
o que robustece ainda mais a tese de que o duplo grau de jurisdição é um
princípio constitucional. Por
simetria ao inciso II do artigo 108 e porque o artigo 125 da Constituição
Federal determinou que os Estados organizassem suas próprias Justiças com
observância dos princípios nela estabelecidos, as Constituições Estaduais e as
leis locais de organização judiciária devem conter dispositivos semelhantes
atribuindo aos respectivos tribunais a competência para julgar, em grau de
recurso, as causas decididas no primeiro grau de jurisdição pelos juízes de
direito. Colocada
a questão nesses termos, ao contrário das conclusões a que chegou o ministro
MOREIRA ALVES no agravo regimental interposto no agravo de instrumento nº
151.641, não se diga que os referidos dispositivos constitucionais encerram
meras regras de competência, sem lastro nos princípios que vertem da
Constituição Federal. Com a devida vênia daqueles que defendem a tese
preconizada pelo Supremo Tribunal Federal, tomá-la em comunhão implica reduzir
a hermenêutica constitucional a um singelo ato de leitura da norma, alheio à
eficácia de vários outros métodos de interpretação normativa, entre os quais
estão o sistemático, o histórico, o lógico e o autêntico. Em
verdade, no atual estágio da consciência jurídica alçada pela doutrina
brasileira, a única discussão legítima que se pode admitir em torno do duplo
grau de jurisdição não reside propriamente na natureza constitucional desse
princípio, mas sim em que circunstâncias e até que ponto ele pode ser mitigado
quando concorrer com outra garantia constitucional, a exemplo da razoável
duração do processo e da efetividade das decisões judiciais. Uma
franca demonstração de que podem ocorrer situações em que dois ou mais
princípios constitucionais de direito processual aparentemente se antagonizam
está no parágrafo terceiro do artigo 515 do Código de Processo Civil, que
autoriza o tribunal a julgar desde logo o mérito do processo quando prover a
apelação para reformar a sentença de mera extinção (artigo 267). Nessa
particular situação prevista no artigo 515, não é difícil constatar a
prevalência do princípio da razoável duração do processo, pois o pedido inicial
será decidido em única instância. Contudo, se o processo não estiver em
condições de imediato julgamento ou houver questão de fato a ser decidida, o
tribunal deverá restituir os autos ao juiz da causa para a emissão da sentença
de mérito, contra a qual caberá nova apelação, o que fará prevalecer o duplo
grau de jurisdição sobre aquela garantia constitucional. Com
esse simples exemplo, fica claro que o duplo grau de jurisdição é um princípio
intimamente associado à segurança jurídica e que, ademais, é absolutamente
natural a concorrência episódica dele com outros valores igualmente
constitucionais relacionados ao direito processual civil. Portanto, o que
verdadeiramente importa ao legislador infraconstitucional é a identificação das
grandezas jurídicas em jogo nessas situações fortuitas e o equacionamento de
todas elas à luz do devido processo legal. Entretanto,
isso não autoriza negar ao duplo grau de jurisdição o status de princípio
constitucional, ainda que se imponham a ele flexibilidades que não comprometam a
segurança do processo, mesmo porque se é certo que a legislação processual
ainda comporta aperfeiçoamentos tendentes a agregar velocidade à prestação
jurisdicional, é igualmente correto que as maiores causas da demora nos serviços
forenses estão ligadas à incúria do Estado de bem aparelhar e administrar o
Poder Judiciário.
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
1. MACIEL, Daniel Baggio. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e sua Jurisprudência. São Paulo: Editora Boreal, 2013 (Coordenador da obra: Daniel Barille da Silveira).
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
1. MACIEL, Daniel Baggio. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e sua Jurisprudência. São Paulo: Editora Boreal, 2013 (Coordenador da obra: Daniel Barille da Silveira).
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