sábado, 5 de maio de 2012

FUNGIBILIDADE ENTRE AS TUTELAS ANTECIPADA E CAUTELAR

A Lei nº 10.444/2.002 introduziu o § 7º no artigo 273 do Código de Processo Civil para estabelecer que: “Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida em caráter incidental do processo ajuizado.” Essa previsão legal representou uma conquista de enorme valor para os jurisdicionados e deve ser creditada sobretudo à advocacia. Isso porque, no período anterior à referida lei, já havia se manifestado entre os advogados o costume forense de postular medidas de simples segurança no próprio processo principal, sem o ajuizamento da ação cautelar (art. 796). Embora esses requerimentos incidentes historicamente tenham sido utilizados para evitar a formação de uma nova relação processual e não fossem estranhos ao direito processual, nem sempre eles eram acolhidos pelo Judiciário devido à ausência de previsão legislativa explícita para tanto. Com a normatização do instituto da antecipação dos efeitos da tutela pela Lei nº 8.952/1.994, que autorizou a concessão de medidas satisfativas e antecipatórias do provimento deferível nas sentenças das ações de conhecimento em geral (arts. 273, 461 e 461-A), ganhou força a prática de requerer providências meramente assecuratórias no próprio processo principal, sem o manejo das genuínas ações cautelares. Essas postulações ora eram feitas com o emprego da terminologia adequada, ora sob o equivocado rótulo de tutela antecipada. Muitos advogados assim atuavam em juízo justificando seus pedidos no poder cautelar geral do juiz (art. 798 e 799) e no princípio da economicidade, agregando, vez ou outra, a coerente ponderação de que se é se lícito ao magistrado antecipar medidas satisfativas, com mais razão lhe é permitido ordenar medidas de mera segurança no processo já instaurado. Sensível às postulações apoiadas nesses fundamentos, parte do Judiciário gradativamente passou a conhecê-las para deferir medidas cautelares no processo de conhecimento, sem a necessidade da propositura das ações cautelares. Com o tempo, os requisitos inerentes às medidas cautelares e aqueles estabelecidos para a antecipação dos efeitos da tutela passaram a ser bem identificados e, como produto desse movimento jurídico de resgate da efetividade do processo, surgiu o § 7º do artigo 273 para autorizar o Judiciário a conceder medidas cautelares incidentalmente no processo em curso, independentemente do rótulo dado à tutela postulada e desde que presentes os seus respectivos pressupostos. Com amparo nesse dispositivo legal, hoje é possível obter, no processo em curso, tanto providências antecipatórias como também medidas cautelares, desde que presentes os pressupostos de cada espécie de tutela e ainda que a parte se equivoque na terminologia atribuída ao pedido, operando o que a doutrina convencionou chamar de fungibilidade. Para tanto, basta que a parte postule a medida assecuratória na petição inicial da ação processual ou posteriormente mediante requerimento incidente a ser decidido pelo juiz ou tribunal, conforme o caso. Exemplificativamente, o cônjuge que pretende o divórcio contencioso e antevê dano iminente ao patrimônio do casal tem a faculdade de ajuizar a ação de conhecimento para pretender o decreto de dissolução do casamento e, logo na petição inicial, requerer a medida de sequestro de bens dos casal (arts. 822, III e 888, VI). Contudo, essa possibilidade postulatória não é privativa do autor. O demandado que necessitar prevenir o direito provável contra o estado de perigo também pode requerer a medida cautelar na contestação, na reconvenção ou mesmo antes destas oportunidades processuais. Posteriormente, ele também poderá fazê-lo sem dificuldades, inclusive quando o processo estiver tramitando em grau de recurso (art. 800, par. único). Embora seja inegável a economia proporcionada pelo § 7º do artigo 273, o processo cautelar permanece intacto enquanto instrumento legal apto à obtenção de medidas de mera segurança do direito provável e pode continuar sendo utilizado quando necessário ao trato do estado de perigo. Sustentar o desuso dele frente às modificações operadas pela Lei nº 8.952/1.994 significa, no mínimo, eliminar um dos pilares de sustentação da função jurisdicional do Estado. Por isso, reprovamos o entendimento manifestado irrefletidamente por uma minoria de magistrados, no sentido de que agora a parte sempre deve requerer a medida cautelar incidentalmente no processo de conhecimento, sem a utilização da ação cautelar. Supostamente autorizados pelo § 7º do artigo 273 e pelo princípio da economicidade, alguns magistrados até hoje sentenciam processos cautelares antecedentes e os encerram de plano sem resolução do mérito, talvez mais preocupados com o suprimento das suas estatísticas de produção junto aos órgãos corregedores da justiça do que propriamente com as necessidades dos jurisdicionados, embora ninguém confesse. O fundamento dessas decisões estaria na imaginária carência de ação por ausência de interesse processual (art. 267, VI), o que, contudo, tem o efeito nocivo de forçar o jurisdicionado a ajuizar precipitadamente a ação principal para, somente assim, obter a tutela necessária ao tratamento do estado de perigo que afeta o direito afirmado. Com efeito, quem conhece a atividade da advocacia sabe do zelo profissional que deve cercar o ajuizamento das ações cognitivas em geral, do trabalho intelectual nem sempre tão singelo de construção das petições iniciais, além das dificuldades habituais de angariar provas que tornem razoavelmente seguro formular em juízo a pretensão de mérito. Por isso, a prevalecer o entendimento dessa minoria de magistrados que revela insensibilidade com as origens e as finalidades do processo cautelar, não raramente os jurisdicionados acabarão se aventurando em ações de conhecimento intentadas sem a necessária maturação. Para descortinar o equívoco daqueles juízes que estimulam o ajuizamento precoce das ações de conhecimento, basta recordar o conceito de "periculum in mora", qual seja, o receio justificado de lesão grave e de difícil reparação ou, como querem os funcionalistas, o fundado temor de dano importante decorrente da demora no ajuizamento, no processamento e no julgamento da ação principal. Não fosse por esse motivo, seria suficiente considerar que o acesso à justiça não pode ser transformado em um dever de demandar, como acaba resultando dessas sentenças terminativas que, sem cerimônia alguma, acabam coagindo o jurisdicionado a intentar precocemente a ação principal. Definitivamente, essa prática judicial ilegítima que se estabeleceu em algumas Comarcas e Seções Judiciárias não encontra o menor respaldo no princípio constitucional do acesso à justiça, de magnitude quase universal há mais de um século e que representa uma genuína garantia individual contra o próprio Estado. Ao lado desses fundamentos, negar a prestação jurisdicional requerida adequadamente mediante ação cautelar antecedente implica séria violência à inafastabilidade da jurisdição, igualmente consagrada no inciso XXXV do artigo 5º da Lei das Leis. Enfim, já é tempo de alguns magistrados se conscientizarem de que, na prática, negativas de jurisdição como essas acabarão permitindo a lesão grave e de difícil reparação que se quer evitar com o uso do processo cautelar antecedente. Aliás, em casos tais, considerando a inviabilidade do recurso de apelação em razão do fator tempo, o resultado deve ser um só: a responsabilidade do Estado pela negativa de prestação jurisdicional, com apoio no § 6º do artigo 37 da Constituição Federal e do próprio juiz, esta dotada de previsão específica no inciso II do artigo 133 do Código de Processo Civil e no inciso II do artigo 49 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Registre-se, porém, que o panorama das ações cautelares incidentais sofreu acentuada modificação com as facilidades proporcionadas pelo § 7º do artigo 273 e que elas, no mais das vezes, passaram a ser desnecessárias para o acesso ao provimento cautelar.
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
1. MACIEL, Daniel Baggio. Processo Cautelar. São Paulo: Editora Boreal, 2012.