domingo, 26 de maio de 2013

O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A leitura do inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal permite identificar o devido processo legal como o principal valor jurídico assimilado pela Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 para caracterizar os modelos de direito processual e de estrutura judiciária adotados pelo Brasil. Fala-se nesses dois modelos porque seria impossível cumprir a garantia constitucional do devido processo legal sem a concepção de uma legislação processual que compreenda as cláusulas fundamentais da inafastabilidade da jurisdição, do contraditório, da ampla defesa, da publicidade dos atos processuais, da motivação das decisões judiciais, bem como um conjunto de direitos, deveres e ônus titularizados pelos sujeitos do processo, a fim de que todo direito material ou processual possa ser tutelado pelo Poder Judiciário com os predicados da segurança, eficiência e justiça. Além disso, esse mesmo superprincípio também exige que o nosso ordenamento legal conceba um sistema judiciário cuja organização funcione de modo a executar concretamente o paradigma de direito processual definido pela Constituição Federal. Longe de serem inéditas, essas observações permitem a conclusão de que não há como efetivar a garantia do devido processo legal sem possibilitar, mediante recursos dirigidos a outra instância judiciária, a revisão das decisões emanadas do primeiro grau de jurisdição, quando estas forem suspeitas de error in judicando ou error in procedendo, pois é certo que a criação de restrições indiscriminadas ao direito de recorrer ao segundo grau de jurisdição aniquilaria uma significativa parcela dos atributos que o processo judicial precisa reunir para ser considerado devido. Por esse motivos, ninguém pode duvidar que o duplo grau de jurisdição constitui um valor congênito ao princípio constitucional do devido processo legal, conclusão esta a que também parece haver chegado eminente ministro ADHEMAR FERREIRA MACIEL (O Devido Processo Legal e a Constituição Brasileira de 1988. Revista de Processo, São Paulo, ano 22, nº 85, 1997). Em reforço a essas considerações, é importante observar que o artigo 92 da Constituição Federal empregou sucessivas vezes a mesma fórmula ao instituir os juízes e os tribunais regionais federais, os juízes e os tribunais do trabalho, os juízes e os tribunais eleitorais, os juízes e os tribunais militares, os juízes e os tribunais dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, fórmula essa que constituiu diferentes graus de jurisdição justamente para poder concretizar o imperativo constitucional contido no inciso LV do artigo 5º e permitir a revisão das decisões judiciais, notadamente daquelas proferidas no primeiro grau de jurisdição. Mas as evidências da natureza constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição não se esgotam nessas constatações. Com efeito, perceba que a Constituição Federal possui vários dispositivos que disciplinam as competências dos tribunais e não esconde a preocupação de proporcionar o acesso dos jurisdicionados a uma segunda instância judiciária para a revisão das decisões resultantes do primeiro grau de jurisdição. Com efeito, na aliena “a” do inciso II do artigo 102 o texto constitucional defere ao Supremo Tribunal Federal a competência para julgar o recurso ordinário manejado contra decisão denegatória de habeas-corpus, habeas-data, mandado de injunção ou mandado de segurança da competência originária dos tribunais superiores, vale dizer, quando estes tribunais atuarem como órgãos judiciais de única instância no julgamento dessas quatro ações constitucionais. Já a alínea “b” do inciso II do artigo 105 da Constituição da República atribui ao Superior Tribunal de Justiça a competência para julgar recurso ordinário interposto contra decisão denegatória em mandado de segurança decidido em única instância pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Isso significa que também se insere nas funções do Superior Tribunal de Justiça o exercício de competência típica de um órgão judicial situado no segundo grau de jurisdição. Por sua vez, o inciso II do artigo 108 da Constituição Federal confere aos tribunais regionais federais a competência para julgar, em sede de recurso e no segundo grau de jurisdição, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição, o que robustece ainda mais a tese de que o duplo grau de jurisdição é um princípio constitucional. Por simetria ao inciso II do artigo 108 e porque o artigo 125 da Constituição Federal determinou que os Estados organizassem suas próprias Justiças com observância dos princípios nela estabelecidos, as Constituições Estaduais e as leis locais de organização judiciária devem conter dispositivos semelhantes atribuindo aos respectivos tribunais a competência para julgar, em grau de recurso, as causas decididas no primeiro grau de jurisdição pelos juízes de direito. Colocada a questão nesses termos, ao contrário das conclusões a que chegou o ministro MOREIRA ALVES no agravo regimental interposto no agravo de instrumento nº 151.641, não se diga que os referidos dispositivos constitucionais encerram meras regras de competência, sem lastro nos princípios que vertem da Constituição Federal. Com a devida vênia daqueles que defendem a tese preconizada pelo Supremo Tribunal Federal, tomá-la em comunhão implica reduzir a hermenêutica constitucional a um singelo ato de leitura da norma, alheio à eficácia de vários outros métodos de interpretação normativa, entre os quais estão o sistemático, o histórico, o lógico e o autêntico. Em verdade, no atual estágio da consciência jurídica alçada pela doutrina brasileira, a única discussão legítima que se pode admitir em torno do duplo grau de jurisdição não reside propriamente na natureza constitucional desse princípio, mas sim em que circunstâncias e até que ponto ele pode ser mitigado quando concorrer com outra garantia constitucional, a exemplo da razoável duração do processo e da efetividade das decisões judiciais. Uma franca demonstração de que podem ocorrer situações em que dois ou mais princípios constitucionais de direito processual aparentemente se antagonizam está no parágrafo terceiro do artigo 515 do Código de Processo Civil, que autoriza o tribunal a julgar desde logo o mérito do processo quando prover a apelação para reformar a sentença de mera extinção (artigo 267). Nessa particular situação prevista no artigo 515, não é difícil constatar a prevalência do princípio da razoável duração do processo, pois o pedido inicial será decidido em única instância. Contudo, se o processo não estiver em condições de imediato julgamento ou houver questão de fato a ser decidida, o tribunal deverá restituir os autos ao juiz da causa para a emissão da sentença de mérito, contra a qual caberá nova apelação, o que fará prevalecer o duplo grau de jurisdição sobre aquela garantia constitucional. Com esse simples exemplo, fica claro que o duplo grau de jurisdição é um princípio intimamente associado à segurança jurídica e que, ademais, é absolutamente natural a concorrência episódica dele com outros valores igualmente constitucionais relacionados ao direito processual civil. Portanto, o que verdadeiramente importa ao legislador infraconstitucional é a identificação das grandezas jurídicas em jogo nessas situações fortuitas e o equacionamento de todas elas à luz do devido processo legal. Entretanto, isso não autoriza negar ao duplo grau de jurisdição o status de princípio constitucional, ainda que se imponham a ele flexibilidades que não comprometam a segurança do processo, mesmo porque se é certo que a legislação processual ainda comporta aperfeiçoamentos tendentes a agregar velocidade à prestação jurisdicional, é igualmente correto que as maiores causas da demora nos serviços forenses estão ligadas à incúria do Estado de bem aparelhar e administrar o Poder Judiciário.
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
1. MACIEL, Daniel Baggio. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e sua Jurisprudência. São Paulo: Editora Boreal, 2013 (Coordenador da obra: Daniel Barille da Silveira).

sábado, 18 de maio de 2013

O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO COMO UM PRINCÍPIO SETORIAL DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Que o duplo grau de jurisdição é um princípio setorial do direito processual civil não há a menor dúvida, tanto assim que inexiste divergência a respeito do assunto entre os doutores. Aliás, ADA PELLEGRINI GRINOVER (1975, p. 138) vai além ao relacioná-lo ao lado de vários outros princípios reconhecidamente constitucionais e ensina que "o duplo grau de jurisdição funda-se na possibilidade da decisão de primeiro grau ser injusta ou errada, daí decorrendo a necessidade de permitir-se sua reforma em grau de recurso." No mesmo sentido estão as lições de EDUARDO ARRUDA ALVIM (2012, p. 152), segundo quem o princípio do duplo grau de jurisdição assegura às partes o direito de pleitear a revisão das decisões judiciais proferidas no primeiro grau de jurisdição, quer em virtude de erros de fato ou de direito, o que se liga intimamente à ideia de justiça. Em excelente monografia sobre o tema, GERSON LUIS CARLOS BRANCO (2011) leciona que o duplo grau de jurisdição é o princípio jurídico segundo o qual todas as decisões terminativas de um processo podem ser submetidas a um novo julgamento, por um órgão especializado, geralmente colegiado. É princípio inerente ao sistema, que prevê a possibilidade de recurso contra todas as decisões que encerram o procedimento na primeira instância, com ou sem resolução de mérito. Após explicar que o duplo grau de jurisdição garante a revisibilidade ampla de quaisquer decisões judiciais, preferencialmente por magistrados distintos e localizados em nível hierárquico diferente, SCARPINELLA BUENO (2010, p. 151-154) também avança para considerá-lo um valor integrante do modelo constitucional adotado pelo direito processual civil brasileiro, tanto em virtude do sentimento generalizado de que é recorrível toda decisão no processo civil, como também de várias previsões constitucionais relacionadas à estrutura do Poder Judiciário e à competência dos tribunais. Uma vez mais, não colocamos qualquer reparo nessas orientações doutrinárias, mas a mera afirmação de que o duplo grau de jurisdição é um princípio de direito processual civil não pode ser suficiente para convencer os graduandos sobre o acerto dessa prestigiosa distinção. Daí porque reputamos necessário realçar, ainda que por amostragem, alguns dispositivos do Código de Processo Civil que nele se inspiraram. Felizmente, a investigação da natureza principiológica e setorizada do duplo grau de jurisdição não é tarefa das mais difíceis, pois a ascensão dele sobre vários dispositivos do Código de Processo Civil é manifesta. Aliás, o simples fato de o Código conter um sistema recursal já configura um sintoma bastante forte da ascendência do duplo grau de jurisdição (CPC, arts. 496 e seguintes). Porém, mais do que sintomática, essa influência torna-se certa quando observamos na legislação codificada a previsão de vários recursos vocacionados à ampla revisibilidade de decisões judiciais emanadas do primeiro grau de jurisdição. A título de exemplo, perceba que o artigo 513 define o cabimento da apelação e não estabelece qualquer restrição importante ao uso desse recurso. Com efeito, ela pode ser interposta contra sentença em que há resolução de mérito (art. 269), bem como em face daquela que se limita a encerrar o procedimento sem fornecer uma resposta ao pedido inicial (art. 267). Além disso, ela pode veicular pedidos de reforma e de invalidação da sentença, independentemente do valor atribuído à causa e da natureza do processo em que for emitida (de conhecimento, execução ou cautelar). No mais, a apelação é recurso com o qual se pode insistir no reexame dos fatos versados no processo, na reavaliação das provas e na revisão de todas as matérias de direito que o magistrado deve levar em conta no momento de decidir. Portanto, não há dúvida de que a disciplina legal da apelação e a devolutividade que ela desencadeia têm suas raízes presas ao princípio jurídico segundo o qual as decisões emitidas no primeiro grau de jurisdição estão sujeitas à revisão por órgão judicial situado em patamar hierárquico diferente, a fim de corrigir possíveis erros de procedimento ou de julgamento capazes de injustiças inconciliáveis com os desígnios do processo judicial. Situação similar ocorre com o agravo contra os pronunciamentos do primeiro grau de jurisdição (arts. 522 a 529), mesmo porque o cabimento desse recurso também não está vinculado a previsões legais adstringentes. Com efeito, ele pode ser interposto contra qualquer decisão interlocutória emanada do juiz da causa e serve para provocar a revisão de todos os componentes da questão incidente. Por isso, ele pode objetivar o reexame dos fatos sobre os quais incidiu a deliberação judicial e das eventuais provas associadas ao respectivo episódio processual, além do direito material ou processual utilizado para resolvê-lo. Ademais, é irrelevante o momento em que a decisão interlocutória é proferida pelo juiz. Seja na fase cognitiva do procedimento em primeira instância ou na etapa de cumprimento do julgado, é admissível o agravo para o segundo grau de jurisdição. Logo, é perceptível que o regramento legal do agravo aqui referido também se inspirou na preocupação do legislador com a boa distribuição da justiça e com o aperfeiçoamento das decisões do primeiro grau de jurisdição, o que se conquista proporcionando a revisão desses pronunciamentos mediante recursos dirigidos a um órgão judicial posicionado em plano hierárquico diverso. Mas não é só. Quem ler o artigo 475 Código de Processo Civil observará que a relevância do duplo grau de jurisdição é tamanha que o legislador não fez a menor cerimônia ao atribuir-lhe a máxima concretude quando o transportou, em termos expressos, para a regra que modera a eficácia da sentença proferida contra a União, Estado, Distrito Federal, Município, autarquia ou fundação pública. Fala-se no reexame necessário, instituto que erige o duplo grau de jurisdição ao status de condição para a executividade da sentença proferida em desfavor dessas pessoas jurídicas de direito público. Pelas razões expostas, não há como desconfiar do caráter axiológico e setorizado do duplo grau de jurisdição, cuja origem mais remota repousa na reflexão dominante de que as decisões judiciais devem se caracterizar por um primor de correção e que, por essa razão, elas devem ser suscetíveis a eventuais emendas por órgão judicial situado em nível hierárquico superior àquele que decidiu em primeira instância.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. MACIEL, Daniel Baggio. O duplo grau de jurisdição como um princípio setorial do processo civil. Araçatuba: Página eletrônica Isto é Direito. Maio de 2013.
2. MACIEL, Daniel Baggio. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e sua Jurisprudência. São Paulo: Editora Boreal, 2013 (Coordenador da obra: Daniel Barille da Silveira).
3. MACIEL, Adhemar Ferreira. O Devido Processo Legal e a Constituição Brasileira de 1988. Revista de Processo, São Paulo, ano 22, nº 85, 1997.
4. ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 14a ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
5. ARRUDA ALVIM, Eduardo. Direito Processual Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
6. BRANCO, Gerson Luis Carlos. O duplo grau de jurisdição e sua perspectiva constitucional. São Paulo: Jurid Versão Eletrônica, 2011.
7. SCARPINELLA BUENO, Cássio. Curso sistematizado de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2010.
8. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1991.