sábado, 21 de julho de 2012

CARACTERÍSTICAS DO DANO MORAL COLETIVO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO E DISTINÇÃO DOS DANOS MORAIS INDIVIDUAIS

Diferentemente do que imaginam os leigos, quando cotejados temas jurídicos, sua interpretação não se apresenta de forma meramente extensiva. Em outras palavras, um ramo do direito não é mero desdobramento ou alongamento do outro, ainda que pertençam à mesma árvore jurídica. Podemos afirmar que, contrariamente à lógica mais simplista, ou sob uma análise semântica, institutos do direito coletivo não podem ser visualizados como um sequenciamento, somatório, extensão ou desdobramento dos direitos individuais. Por exemplo, a dispensa coletiva não é apenas um somatório ou multiplicidade de dispensas individuais de trabalhadores, da mesma forma que o dano moral coletivo não é um somatório ou uma pluralidade de danos morais individuais. Cremos que neste ponto fulcral reside a maior confusão conceitual entre o dano moral individual e o dano moral coletivo e sua efetiva aplicabilidade no mundo do Direito do Trabalho. Em primeiro plano, é importante destacar as diferenças entre o dano moral individual e o dano moral coletivo na seara trabalhista. O dano moral individual configura-se quando a honra, a dignidade, a intimidade, a imagem, a reputação da pessoa do trabalhador são atingidas por ato abusivo ou ilícito do empregador, no âmbito da relação empregatícia, tendo como pressupostos a dor moral, a angústia, a humilhação, o constrangimento etc. Já o dano moral coletivo apresenta um tratamento meta ou transindividual, relacionado aos direitos difusos e coletivos de uma comunidade de indivíduos, no caso de trabalhadores. Portanto, o dano moral coletivo não se confunde com o dano moral individual, pois enquanto este é um instituto de Direito Individual do Trabalho, com características peculiares, aquele pertence ao Direito Coletivo do Trabalho e possui regras, princípios e institutos próprios, denotando a necessidade de uma diferente leitura jurídica. O dano moral coletivo pode ser verificado em qualquer abalo no patrimônio moral de uma coletividade a merecer algum tipo de reparação à violação a direitos difusos, coletivos ou eventualmente direitos individuais homogêneos[1], tendo surgido em face dos novos interesses e direitos da sociedade moderna de massa, que exige uma efetiva tutela jurídica a direitos moleculares. O dano moral individual suscita, para sua proteção, o ajuizamento, geralmente, de ações atomizadas, por qualquer indivíduo que se sentir lesado; o dano moral coletivo, por sua vez, somente pode vir a ser reparado por meio da ação dos legitimados, seres coletivos, como as associações, os sindicatos, o Ministério Público do Trabalho e as demais entidades mencionadas no art. 5º da Lei nº 7.347/85 e no art. 82 da Lei nº 8.078/90. Xisto Tiago Medeiros Neto conceitua dano moral coletivo como “lesão injusta e intolerável a interesses ou direitos titularizados pela coletividade (considerada em seu todo ou em qualquer de suas expressões – grupo, classes ou categorias de pessoas), os quais possuem natureza extrapatrimonial, refletindo valores e bens fundamentais para a sociedade”[2]. Dessa forma, algumas diferenças fazem-se presentes entre o dano moral individual e o dano moral coletivo, quais sejam: o dano moral individual é eminentemente subjetivo e sua caracterização demanda, no plano fático, a constatação – pelo menos em tese – do dano, lesão, angústia, dor, humilhação ou sofrimento do lesado, ao passo que o dano moral coletivo é de natureza objetiva, caracterizado como damnum in re ipsa, ou seja, verificável de plano pela simples análise das circunstâncias que o ensejaram. Embora tanto o dano moral individual como o dano moral coletivo tenham seu fundamento de validade no artigo 5º, incisos V e X, da Constituição Federal de 1988, considerando os próprios dizeres do título do Capítulo I da Constituição (DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS), no plano infraconstitucional baseiam-se em institutos diferenciados, como estamos a desenvolver (grifo nosso). Assim, o dano moral individual, de natureza subjetiva, fulcra-se no art. 186 do Código Civil, e o dano moral coletivo, de natureza objetiva, tem por fundamento o parágrafo único do art. 927 do mesmo Código Civil, de forma que não se exige, no plano fático, que haja necessidade de se perquirir sobre a culpabilidade do agente. Basta que se realize, no plano dos fatos, uma conduta empresarial que vilipendie normas de ordem pública, tais como o não atendimento das Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego no meio ambiente laboral, a não contratação de empregados com necessidades especiais ou portadores de deficiência (art. 93 da Lei nº 8.213/91), de aprendizes (arts. 428 e seguintes da CLT e Decreto nº 9.558/2006), discriminação, trabalho escravo, assédio moral ou sexual, atos antissindicais, fraudes trabalhistas, etc. Empresas que forem flagradas pela ação fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego ou mesmo do Ministério Público do Trabalho, por meio de ações ou diligências conjuntas, certamente poderão e deverão ser condenadas por dano moral coletivo, em ações civis públicas, ou por descumprimento de Termos de Ajuste de Conduta, por desrespeito a normas de ordem pública e a direitos indisponíveis dos trabalhadores cujas lesões atinjam a ordem jurídica, como os casos de trabalhadores encontrados em situação análoga à de escravos, assédio moral ou sexual, trabalho infantil, trabalho em lixões, em minas de carvão e em atividades proibidas e exploração sexual comercial de jovens e adolescentes. Verifica-se que, para a configuração do dano moral coletivo no caso concreto, basta que haja a constatação de ilicitudes envolvendo direitos coletivos, difusos e eventualmente individuais homogêneos, para que toda a sociedade seja ultrajada. A condenação terá um caráter pedagógico, punitivo, exemplar e inibitório, no sentido de se evitarem reincidências. Portanto, para a efetiva constatação do dano moral coletivo não é necessária a ocorrência de efeitos subjetivos, como o constrangimento, a angústia, a humilhação ou eventual dor moral. Se estas vierem a ocorrer e a se manifestar no grupo ou comunidade atingida, caracterizar-se-ão apenas como efeitos do ato lesivo perpetrado pelo infrator. O dano moral coletivo, por se enquadrar no instituto do Direito Coletivo do Trabalho, relaciona-se aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos e pode ser manejado nas ações moleculares ou em processos administrativos (Inquéritos Civis) titularizados pelo Ministério Público do Trabalho. No plano fático, a ocorrência do dano moral coletivo pode ser verificada, como dito, não apenas nas hipóteses de violações a direitos fundamentais dos trabalhadores, da maior relevância social, como agressões ao meio ambiente do trabalho, à segurança, à vida, etc., bem como em ofensas a direitos da personalidade, como agressões à vida privada, à intimidade, à honra, nas hipóteses de assédio moral, trabalho forçado ou degradante, trabalho de crianças e menores em situações de vilipêndio à dignidade humana (piores formas de trabalho infantil) e, ainda, no não cumprimento de cotas sociais de inserção no mercado de trabalho (aprendizes, estagiários e empregados com deficiência). O dano moral individual tem assento constitucional (art. 5º, V e X) e, no plano infraconstitucional, é amparado por várias leis especiais já mencionadas neste trabalho, ao passo que o dano moral coletivo, de origem mais recente, pois vinculado aos direitos humanos de Terceira Dimensão, é tutelado pelas leis que constituem o núcleo do microssistema de tutela coletiva, ou seja, as Leis nº 7.347/85 e nº 8.078/90. Com efeito, o dano moral coletivo apresenta-se como um pleito nas ações moleculares, ou seja, ações civis públicas ou ações civis coletivas, a serviço da proteção de interesses maiores da coletividade, da maior dignidade possível às futuras e presentes gerações, envolvendo o direito à vida, à saúde, à educação, ao meio ambiente digno, à segurança, à honra, à intimidade, enfim, à dignidade da pessoa humana, fundamento de validade do Estado Democrático de Direito. Ressalte-se que, se por um lado as ações atomizadas (reclamatórias trabalhistas) buscam geralmente verbas trabalhistas não honradas no curso do contrato de trabalho ou no ato da dispensa do empregado – e, em algumas situações, reparações por danos morais –, por outro, as ações moleculares, especialmente as ações civis públicas, têm por objeto obrigações de fazer ou não fazer relacionadas a valores e direitos fundamentais da pessoa do trabalhador e mesmo da sociedade. De outra parte, empresas e empregadores que não cumprem sua função social em relação às cotas legais – por exemplo, cota de aprendizagem, estabelecida no art. 428 e seguintes da CLT e no Decreto nº 5.598/2005, e cota de inserção de trabalhadores com necessidades especiais (art. 93 da Lei nº 8.213/91) – poderão ser apenados, por meio do pagamento de multas ou astreintes em Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), pelo Ministério Público do Trabalho ou em ações civis públicas perante a Justiça do Trabalho. Outra diferença fundamental entre o dano moral individual e o coletivo encontra-se na destinação dos recursos: os valores atribuídos ao dano moral individual são carreados para os trabalhadores considerados individualmente lesados, e aqueles oriundos do dano moral coletivo são destinados a fundos protetores de clientelas específicas (idoso, criança, adolescente, deficientes etc.), ao Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT (Lei 7.998/98) ou a entidades filantrópicas, sem fins lucrativos, por meio de doações em espécie ou in natura, sujeitas à prestação de contas. Entre as formas de reparação encontramos as obrigações de fazer ou restaurar (ex: meio ambiente violado, construção de hospitais, creches, centros de capacitação para jovens, adolescentes, trabalhadores com necessidades especiais) e pecuniária, com destinação aos fundos sociais, com interesse público, ou às entidades mencionadas. Cícero Rufino Pereira [3] nos informa que: “em sede de inquérito civil, o membro do Ministério Público poderá firmar Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou, como também é conhecido, compromisso de ajustamento de conduta (visando à reparação do dano, à adequação da conduta às exigências legais ou normativas, ou ainda, à compensação ou indenização pelos danos causados pelo investigado); bem como expedir recomendações (estas também nos autos do procedimento preparatório), “visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como aos demais interesses, direitos e bens cuja defesa lhe caiba promover.”. Os valores fixados a título de reparação por dano moral coletivo geralmente são imanentes de pedidos genéricos (an debeatur), que por certo deveriam figurar ao lado das ações universais no Código de Processo Civil, art. 286, devidamente arbitrados pelo juiz (quantum debeatur) nas ações judiciais ou pelo procurador do trabalho nos TACs e nos processos administrativos, levando-se em consideração a capacidade econômica do lesante e a gravidade da ofensa ao patrimônio moral da coletividade, com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Não deve, entretanto, ser causa de enriquecimento sem causa, em valor desproporcional, nem tão insignificante, de modo a não provocar nenhum efeito pedagógico ou repressivo para o lesante.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. É importante destacar que os direitos individuais homogêneos que foram inseridos em nosso ordenamento jurídico pela Lei 8.078/90 (art. 81, III) são, na verdade, direitos individuais puros, de origem comum, que podem ser postulados, em caso de lesão, de forma individual por meio de ações atomizadas ou de forma coletiva, nas ações moleculares, especialmente por meio das ações civis coletivas, regulamentadas pelo CDC.
2. MEDEIROS NETO, Xisto Tiago. Dano moral coletivo. 2. ed. São Paulo: LTr, 2007. p. 137.
3. PEREIRA, Cícero Rufino. Efetividade dos direitos humanos trabalhistas – o Ministério Público e o tráfico de pessoas. São Paulo: LTr, 2007. p. 133.
(*) Este artigo é da autoria de ENOQUE RIBEIRO DOS SANTOS, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da UNESP (Franca), Doutor e Livre Docente em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Foi Procurador do Trabalho do Ministério Público do Trabalho e, atualmente, é Desembargador Federal do Tribunal Regional do Trabalho da Primeira Região (email: enoque-ribeiro@uol.com.br).

Um comentário:

Patrícia disse...

muito bom este texto,porque além dos leigos,muitos de nós,iniciantes no curso de Direito,temos diversas dúvidas a respeito de assuntos que serão tratados nos próximos semestres.Acompanhando os assuntos tratados aqui,tenho uma noção prévia bastante sólida do que futuramente estudarei na faculdade.

Parabéns pelo Blog!