quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O QUE TODO ACADÊMICO DE DIREITO DEVERIA SABER

"No processo deve vencer quem tem razão, mas fazer com que esta prevaleça exige muito conhecimento e a falta deste é fonte de injustiça."

Uma afirmação falsa pronunciada reiteradamente possui um enorme potencial para se tornar verdade aos menos avisados. Uma dessas falácias é a de que o vocábulo “aluno” traduz um indivíduo "sem luz”, propagada com velocidade a partir do fenômeno da internet (“a”= prefixo grego de negação + “lun”= do latim "luminis"). Exceto por alguns escritores mais cautelosos, muitos se limitam a reproduzir essa equivocada noção. Porém, para desfazê-la, é suficiente uma breve incursão em qualquer dicionário mais abalizado e nele perceberemos que, etimologicamente, a literalidade do termo “aluno” significa “lactente” ou “filho adotivo” (do latim "alumnu"= criança que se dá para criar). No sentido metafórico, essa palavra designa alguém que ainda é intelectualmente imaturo, uma espécie de discípulo ou pupilo que precisa ser nutrido culturalmente por um ou mais professores, até alcançar certa autonomia. É desvendando esse pequeno mito que inicio este breve artigo, que se dirige primordialmente a meus colegas professores, mesmo porque não tenho a pretensão de convencer qualquer aluno sobre a propriedade das minhas considerações. Em verdade, o mito que cotidianamente me aflige, em especial no período dos exames de final de ano, é o de que os conhecimentos e as habilidades dos nossos discípulos são mensuráveis exclusivamente segundo um critério matemático empregado nas provas escritas que, invariavelmente, todos nós aplicamos nas faculdades de Direito. Antes que alguém suspeite que sou contrário a esse tipo de exame, adianto-me para reconhecer que ele é absolutamente necessário na nossa área de formação, afinal, as provas escritas costumam desencadear estudos mais ou menos demorados e são instrumentos valiosos para sedimentar conteúdos relevantes para a vida profissional que esses acadêmicos almejam, ainda que eles não a conheçam em profundidade. Em outras palavras, esses resultados normalmente são alcançados não só nos momentos que antecedem essas atividades e naqueles que as sucedem, mas também durante a execução delas, em que os alunos são levados a recordar conceitos, noções, raciocínios e conclusões úteis à resolução dos questionamentos que lhes são apresentados, muitos deles representativos de eventos recorrentes no plano naturalístico. Essa é a primeira de um conjunto de razões pelas quais rejeito, com veemência, o tortuoso ditado segundo o qual “na prática a teoria é outra”. Definitivamente, este é o pior de todos os mitos que rondam a academia de Direito e, a respeito dele, não tenho o menor receio de dizer que o profissional que ousa divulgá-lo sabe pouco ou nada sobre uma coisa e outra. Aliás, se os conhecimentos teóricos sobre o Direito existem para tornar segura a aplicação dele, que é fortemente vocacionada à prevenção e à resolução de litígios, parece-me um tanto imprudente alguém levantar essa bandeira e se lançar a mediar interesses de outrem, sem antes dominar, suficientemente, os conteúdos teóricos relacionados ao caso concreto e seus possíveis desdobramentos. Daí porque me posiciono ao lado daqueles que defendem a necessidade de novas balizas para a graduação em Direito, mas sem que haja a supervalorização da prática em detrimento da teoria, que é seu pressuposto e, para mim, uma espécie de cláusula pétrea da formação jurídica: ela não comporta restrição ou supressão pelo “poder reformador” do Ministério da Educação. Assentadas essas premissas e retornando à inquietação que motivou a construção desse texto, deixo grafado, privativamente para a reflexão dos meus colegas de várias universidades, que não tenho recordação de haver me equivocado nos prognósticos que todos nós naturalmente fazemos a respeito do aproveitamento dos nossos alunos nas provas escritas. No meu caso, aqueles acadêmicos que revelaram alto desempenho em sala de aula sempre apresentaram elogiável rendimento na soma das provas a que se submeteram. Hoje, muitos deles são advogados bem sucedidos, magistrados, membros do Ministério Público, defensores públicos, delegados de polícia estadual ou federal, professores que dividem comigo o mesmo ambiente de trabalho, servidores públicos nas mais diversas funções. De outro lado, os alunos que manifestaram atividade insatisfatória na sequência dos encontros letivos jamais deixaram de colher resultados frustrantes. A propósito, dentre os sintomas mais frequentes de atividade insatisfatória estão os seguintes: 1) atrasos para o ingresso na sala de aula; 2) saídas antecipadas dela; 3) faltas episódicas e injustificadas; 4) faltas habituais, sucessivas ou intercaladas, mesmo que justificadas; 5) organização deficiente das rotinas diárias; 6) desvio de atenção; 7) inexecução de atividades extraclasse; 8) desídia; 9) desinteresse; 10) não utilização dos materiais sugeridos; 11) falta de acesso à bibliografia recomendada; 12) uso de aparelhos de telefonia móvel ou de equipamentos similares durante os encontros; 13) utilização anômala de microcomputadores em sala; 14) falta de interação com o professor ou com os colegas de classe; 15) inexecução de estágio profissional ou acesso tardio a ele. Entre esses dois extremos permaneceu uma grande parte dos alunos e, quanto a estes, observei com alguma frequência os sintomas catalogados nos números 1, 3, 5 e 15, bem como bem uma modesta interação com o professor, além do recurso inconstante à literatura sugerida. Ciente de que o baixo desempenho acadêmico normalmente é sintomático, há anos venho adotando a prática de dialogar com alguns alunos, a fim de investigar as causas das suas insuficiências e de contorná-las com a máxima precocidade possível. Refiro-me a “alguns alunos” porque nem todos são receptivos a abordagens dessa natureza e muitos tendem a transformar conselhos pedagógicos em advertências injustas ou em promessas de retenção despropositada, inconciliáveis com as funções de quem exerce o magistério. Com a devida vênia daqueles que pensam diferente, a falta de uniformidade no tratamento do baixo rendimento estudantil e a resposta a ele mediante a simples atribuição de notas numéricas nas provas escritas compõem, na minha concepção, uma metodologia de trabalho que comporta substancial aperfeiçoamento, inclusive porque já se tornou conveniente, para uma massa importante de alunos, debitar a seus professores todas as culpas pelos insucessos que cultivaram mediante a adoção de um, alguns, vários ou todos os comportamentos acima relacionados. No final de tudo, uma das relações humanas mais primorosas se deteriora e, sem demora, o professor deixa de ser acolhido como um profissional que, por sua qualificação e experiência, é capaz de transmitir didaticamente alguma ciência, arte, técnica ou outro conhecimento importante para a formação do cidadão (consulte “A República”, de Platão) e passa a ser visto como um obstáculo incômodo para o acesso ao grau de bacharel em Direito. Certamente, parte das soluções para a formação em Direito pode ser colhida de vários textos de Espinosa, mas estou convencido de que nenhum marco regulatório possui a capacidade mágica de elevar sobremodo os índices de aprovação na Ordem dos Advogados do Brasil e nos concursos públicos para determinadas carreiras jurídicas, cuja metodologia de avaliação dos candidatos igualmente merece reparos. Enfim, penso que os problemas locais de desempenho acadêmico merecem acertamentos locais, intimamente ligados à política universitária, especialmente no tocante às avaliações discentes. Sairão na frente as instituições que mais cedo tiverem a ousadia de desenredar certos mitos sobre exigir mais dos alunos (na medida dos serviços que lhes são prestados), enfrentarem com coragem as causas do baixo desempenho acadêmico e inovarem mediante fundamentos consistentes. Sairão na frente os alunos que mais cedo realizarem uma avaliação sincera de si próprios e se conscientizarem de que todo profissional serve a outrem, o que, na nossa área, exige intensa e permanente capacitação. Enquanto isso, fico lembrando com saudades dos meus tempos de colégio, em que a cartilha do professor também servia para registrar pontos positivos e negativos, conforme o nosso desempenho diário nos afazeres escolares. Será mesmo que estavam errados aqueles estimados docentes, que alfabetizaram e formaram grande parte da minha geração?
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1. MACIEL, Daniel Baggio. Indicado para professores e sem contraindicação para alunos. Araçatuba: Página eletrônica Isto é Direito. Dezembro de 2013.
2. Nota explicativa: o vocábulo "mito" foi utilizado coloquialmente pelo autor para significar uma ideia falsa, pois o uso acadêmico dele geralmente não envolve qualquer julgamento quanto à verdade ou falsidade.

sábado, 14 de dezembro de 2013

A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O artigo 4º do novo CPC incorporou a garantia da razoável duração do processo e dos meios que assegurem a celeridade da sua tramitação, inserida no inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 45/2004, garantia essa que gravita em torno das ações cognitivas, executivas e cautelares, bem como dos processos delas originários. Deve ser assim porque o direito de ação não se resume à prerrogativa de acesso à Justiça a todo aquele que afirmar lesão ou ameaça a direito. Ele também encampa o direito dos jurisdicionados a um conjunto de técnicas processuais capazes de viabilizar a obtenção tempestiva e eficaz das tutelas compromissadas pelo sistema legal para os direitos em geral, sem que haja o sacrifício da segurança jurídica que todos esperam encontrar no processo. Em outras palavras, é preciso ter em mente que se a excessiva demora na duração do processo é um problema que precisa ser erradicado para que se alcance um padrão satisfatório de serviço judiciário no Brasil, a realização de uma justiça indiscriminadamente veloz também é capaz de repercutir negativamente na qualidade desse tipo de prestação estatal, mesmo porque uma significativa parcela das demandas judiciais requer a investigação da verdade dos fatos que lhes são subjacentes e, sabidamente, a descoberta dela nem sempre é tarefa das mais ágeis. Portanto, o ideal é o balanceamento dos vetores da celeridade e da segurança jurídica no processo, o que exige do legislador a identificação das várias modalidades de ações compreendidas pelo ordenamento legal e a disciplina dos respectivos procedimentos em consideração aos objetivos de cada categoria processual, assim também às eventuais particularidades do direito que se almeja tutelar. A título de exemplo, se o processo de execução tem como pressupostos a liquidez, a certeza e a exigibilidade da obrigação documentada no título executivo, não faz sentido dotá-lo de um procedimento cuja dialeticidade e o contraditório sejam tão intensos como aqueles que caracterizam o processo de conhecimento, que sempre se inicia com a incerteza sobre qual das partes tem razão. É por essa razão que não se podem conceber procedimentos executivos compostos por um número elevado de atos processuais ou com prazos legais demasiadamente elásticos, pois a celeridade que deles se pode exigir acabaria comprometida em nome de uma segurança jurídica que, em grande parte, já é deferida pelo título que aparelha a execução. Do mesmo modo, também não se pode admitir um procedimento de cognição exauriente tão simplificado e veloz que ameace a descoberta da verdade dos fatos constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito rivalizado pelas partes, o que aniquilaria a segurança jurídica no processo, a pretexto da busca desenfreada pela celeridade. Para que se estimule a celeridade processual, tão relevante quanto o equacionamento desses vetores é que o legislador lance mão de mecanismos para combater abusos do direito de defesa, comportamentos protelatórios empregados dentro ou fora do processo e eventuais faltas funcionais do próprio magistrado, o que normalmente se consegue com a imposição de sanções pecuniárias ao litigante de má-fé (arts. 82, 83, 84 e 122), mediante técnicas processuais de concessão de tutelas de urgência e de evidência (arts. 269 a 278), assim também com a responsabilização civil daquele agente público (art. 123, inc. II). Ademais, para que se respeite a referida garantia constitucional, o legislador deve ter a perícia de perceber que determinados direitos materiais, por sua própria índole, trazem ínsita a necessidade de uma tutela jurisdicional diferenciada e, não raro, impassível de aguardar a emissão de um pronunciamento judicial definitivo, independentemente da ocorrência de qualquer circunstância episódica capaz de desencadear-lhe lesão importante, o que recomenda a criação de procedimentos caracterizados por um ou mais elementos especializantes, a exemplo da liminar nas ações possessórias de força nova (art. 548). No tocante aos recursos, a preocupação não pode ser menor, pois é vital que o legislador identifique quais deles são realmente imprescindíveis para a concretização do paradigma de processo civil definido pela Constituição Federal e elimine aqueles que se mostram supérfluos, o que perpassa pela reavaliação das competências atribuídas aos tribunais brasileiros. Sem pretender exaurir a receita de um processo civil sinceramente compromissado com a razoável duração e que não adstrinja a segurança jurídica que precisa caracterizá-lo, importante mesmo é ter a honestidade para reconhecer que a crise deflagradora da criação do novo Código nunca esteve enraizada no estatuto de 1.973, mas sim nas múltiplas insuficiências de infraestrutura e de administração do Poder Judiciário, todas elas bradadas há décadas pelos profissionais que se ativam junto dele. Daí porque preferimos falar em “crise judiciária”, não propriamente em “crise do processo”, ao contrário do que muitos passaram a apregoar, inadvertidamente. Seja como for, ao estabelecer que as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução para a lide, inclusive a atividade satisfativa, o artigo 4º do novo CPC impôs aos órgãos do Poder Judiciário o dever de fornecer a prestação jurisdicional com a eficiência prometida pela Constituição Federal (art. 5º, inc. LXXVIII) e possibilitada pela nova codificação, o que implica para os juízes e tribunais um conjunto de atuações cotidianas voltadas à concretização desse comando em todas as espécies de processo, qualquer que seja o procedimento aplicável. Portanto, a partir da vigência do novo estatuto processual, já não serão mais admissíveis escusas ordinárias para o retardamento que passou a caracterizar os serviços forenses nas últimas décadas, razão pela qual a inexecução da norma do no artigo 4º poderá acarretar a responsabilidade patrimonial do Estado, nos moldes do § 6º do artigo 37 da Constituição Federal, quando causar dano ao jurisdicionado em virtude de ato ou omissão debitável a qualquer agente judiciário faltoso, inclusive aos magistrados. Do mesmo modo, independentemente da existência de culpa, o Estado também poderá ser responsabilizado patrimonialmente pelos danos que causar em decorrência de falha anônima relacionada à impontualidade dos serviços forenses, responsabilidade essa que, como já tivermos oportunidade de sustentar em obra específica, é igualmente objetiva. Para atender ao disposto no artigo 4º e evitar a responsabilidade estatal pela prestação jurisdicional anormal, juízes e tribunais deverão corresponder a um conjunto de poderes-deveres que lhes foram conferidos pela nova codificação, dentre os quais convém destacar os seguintes: a) instar as partes e seus procuradores a contribuírem para a rápida solução da lide e a colaborarem para a identificação das questões de fato e de direito, abstendo-se de provocar incidentes desnecessários e procrastinatórios (art. 8º); b) limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, na fase de conhecimento ou na de execução, quando este comprometer a rápida solução do litígio, dificultar a defesa ou o cumprimento da sentença (art. 112, § 1º); c) exigir das partes e seus procuradores que procedam com lealdade no processo, aplicando sanções pecuniárias ao jurisdicionado que proceder com improbidade (arts. 80 a 84); d) cobrar do escrivão, do oficial de justiça e dos demais auxiliares do juízo o cumprimento tempestivo dos atos impostos por lei ou determinação judicial (art. 134); e) exigir do perito a entrega do laudo no prazo que lhe for assinado (arts. 136 e 450), substituindo-o quando assim não proceder sem motivo legítimo (art. 448, inc. II); f) advertir os órgãos ou repartições públicas incumbidas da prova pericial a que cumpram a determinação com preferência, no prazo estabelecido, impondo multa inclusive a seus dirigentes na hipótese de descumprimento desses deveres (art. 462, §§ 1º e 2º); g) só ampliar os prazos dilatórios quando absolutamente necessário para conferir maior efetividade à tutela do bem jurídico ou em consideração à complexidade da causa (art. 118, inc. V e art. 185); h) promover o andamento célere do processo (art. 118, inc. I); j) tentar, prioritariamente e a qualquer tempo, compor amigavelmente as partes (art. 118, inc. II); l) apenas deferir a convenção das partes sobre a prorrogação de prazo dilatório quando fundada em motivo legítimo (art. 189); m) somente prorrogar prazos peremptórios nas comarcas ou seções judiciárias onde for difícil o transporte ou em caso de calamidade pública (art. 190); n) não exceder os prazos que o Código estabelece, salvo por motivo justificado (art. 195); o) proferir despachos de expediente em cinco dias, sentenças em vinte dias e demais decisões em dez dias (art. 196); p) fiscalizar a atividade do serventuário de remeter os autos conclusos em um dia e de executar os atos processuais em cinco dias (art. 197), salvo no processo eletrônico, em que a movimentação deverá ser imediata (§ 2º); q) instaurar contra o serventuário procedimento administrativo quando exceder prazos sem motivo legítimo (art. 200); r) determinar, de ofício, o desentranhamento de petições, manifestações e documentos apresentados por advogados públicos ou privados, defensor público ou membro do Ministério Público, quando qualquer um deles exceder o prazo de restituição dos autos (art. 201); s) indeferir a convenção das partes a respeito da suspensão do processo por período superior a seis meses (art. 288, § 3º); t) cuidar para que o processo não permaneça suspenso por mais de um ano, quando a sentença de mérito depender do julgamento de outra causa ou da declaração da existência ou não da relação jurídica, que constitua objeto principal de outro processo pendente; quando ela não puder ser proferida senão depois de verificado determinado fato ou de produzia certa prova requisitada por outro juízo; ou quando ela tiver como pressuposto o julgamento de questão de estado, requerido como declaração incidente (art. 288, § 4º); u) no tribunal, vistar os autos no prazo máximo de dez dias e restituí-los prontamente para a reinclusão na pauta de julgamento na sessão seguinte à devolução (art. 895); v) promover a publicação do acórdão dentro de um mês contado da data da sessão de julgamento (art. 897, § 3º). Dentre os dispositivos do novo Código que estimulam a razoável duração do processo, é importante realçar o artigo 204, que possibilita a qualquer das partes, ao Ministério Público e à Defensoria Pública representar ao presidente do tribunal contra o magistrado que excedeu o prazo previsto em lei, iniciativa essa que dará origem a um procedimento para apuração da responsabilidade disciplinar desse agente público e autoriza aquele órgão superior, conforme as circunstâncias, avocar os autos em que ocorreu o excesso, remetendo-os ao substituto legal do magistrado faltoso, sem prejuízo das providências administrativas (§§ 1º e 2º). Independentemente da instauração desse procedimento disciplinar, o artigo 123 prevê que o magistrado poderá ser responsabilizado pessoal e patrimonialmente pelos danos que causar quando, no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude, bem como nas hipóteses de recusa, omissão ou retardamento, sem justo motivo, de providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento. Contudo, nessas últimas três situações, o parágrafo único do mencionado artigo condiciona a responsabilidade civil do magistrado à falta de apreciação, em dez dias, da providência requerida pela parte e que foi objeto da recusa, omissão ou retardamento judicial, sem justo motivo.
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1. MACIEL, Daniel Baggio. A razoável duração do processo e o novo Código de Processo Civil. Araçatuba: Página eletrônica Isto é Direito. Dezembro de 2013.
2. Nota: Este artigo foi produzido a partir do projeto do novo Código de Processo Civil e considerou as alterações apresentadas no relatório geral do senador Valter Pereira.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

AS ESPÉCIES DE CITAÇÃO NA EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA

A execução por dívida em dinheiro é denominada execução por quantia certa pelo Capítulo IV, do Título II, do Livro II, do Código de Processo Civil e nele se localizam os artigos 652, 653 e 654, que regem a fase inicial do respectivo procedimento. Nesse primeiro dispositivo legal, há a previsão de que o executado será citado para, no prazo de três dias, pagar a dívida e que, não efetuado o pagamento, munido da segunda via do mandado, o oficial de justiça procederá de imediato à penhora de bens e sua avaliação, lavrando-se o respectivo auto e de tais intimando, na mesma oportunidade, o devedor (par. 1º). Por sua vez, o artigo 653 determina que o oficial de justiça, não encontrando o executado para citação, arreste tantos bens quantos bastem para a garantia da execução e que, nos dez dias seguintes à efetivação da medida, esse auxiliar do juiz procure o devedor três vezes em dias distintos, certificando o ocorrido caso não o encontre (par. único). Atento a esse possível desdobramento, o artigo 654 estabelece que compete ao exequente, dentro de dez dias contados da data em que for intimado do arresto, requerer a citação editalícia do devedor e que, findo o prazo do edital, o executado terá três dias para efetuar o pagamento, sob pena de o arresto converter-se em penhora. Portanto, o Código de Processo Civil não deixa dúvida de que a citação na execução por quantia certa deve ser efetivada por oficial de justiça, embora admita como subsidiária a citação por edital. Apesar disso, cabe questionar se a dinâmica executiva criada por esses dispositivos legais impede que a citação seja realizada por correio ou com hora certa. Não obstante existam abalizadas opiniões doutrinárias admitindo a citação por correio nesse modelo executivo, a verdade é que a alínea "d" do artigo 222 é categórica ao vedá-la, o que é suficiente para sepultar quaisquer especulações teóricas a respeito do assunto. Porém, no tocante à citação com hora certa, a solução do impasse é bem mais delicada porque o Código não a proibiu textualmente, embora o referido artigo 654 sinalize claramente no sentido da citação por edital, caso o executado não seja encontrado pelo oficial de justiça naqueles dez dias posteriores ao arresto. Particularmente, sempre acreditamos que a opção do Código pela citação editalícia é correta em razão da publicidade a ela inerente e da ritualística exigida para aperfeiçoá-la, que acaba proporcionando, em razão do fator tempo, condições mais favoráveis à adoção de qualquer dos comportamentos que o Código faculta ao executado. No entanto, cumpre observar que a citação com hora certa nada mais é do que a citação por oficial de justiça reclamada pelo artigo 652 e que, tanto quanto a citação por edital, ela é um tipo de citação ficta. Além disso, ninguém duvida que a citação com hora certa é bem mais eficaz na comunicação ao devedor de que contra ele se desenvolve o processo de execução. Por essas razões, rendemos aplausos à Súmula 196, recentemente editada pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual "ao executado que, citado por edital ou por hora certa, permanecer revel, será nomeado curador especial, com legitimidade para apresentação de embargos." No mais, vale acrescentar que a citação por meio eletrônico catalogada no inciso IV do artigo 221 também se compatibiliza com a execução por quantia certa, contanto que se cumpram os requisitos impostos pela Lei 11.416/2006, notadamente aqueles previstos nos artigos 5º e 6º.
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1. MACIEL, Daniel Baggio. As espécies de citação na execução por quantia certa. Araçatuba: Página eletrônica Isto é Direito. Setembro de 2013.

domingo, 4 de agosto de 2013

RECURSO INOMINADO

Nos Juizados Especiais Cíveis disciplinados pela Lei 9.099/95, a sentença não desafia apelação, mas "recurso" a ser decidido com sucinta fundamentação por uma turma ou colégio recursal integrado por magistrados que atuam no primeiro grau de jurisdição (arts. 41, 42 e 43). É por essa razão que o processo não alcança o tribunal e é revisado no ambiente do próprio Juizado Especial. Excetuadas as diferenças procedimentais, esse recurso se assemelha à apelação prevista no Código de Processo Civil, porquanto o manejo dele volta-se à revisão das sentenças que resolvem ou não o mérito do processo. É justamente a vocação legal desse recurso que induziu alguns escritores a ponderarem que ele poderia ter recebido o nome de “apelação", apenas com a ressalva de endereçamento ao órgão recursal do próprio Juizado. Todavia, a desnecessidade de atribuir-lhe uma nomenclatura específica resultou da circunstância de que, no sistema criado pela Lei 9.099/95, existe um único meio de impugnação das decisões judiciais, não uma variedade deles como ocorre no Código de Processo Civil, em que cada recurso recebeu um rótulo exclusivo e uma disciplina particularizada. Outra peculiaridade que caracteriza o recurso inominado é a de que o recebimento dele não impede o cumprimento imediato do julgado, exceto se o juiz atribuir-lhe efeito suspensivo para evitar dano irreparável à parte (art. 43). Esclarecidos esses aspectos, registre-se que o mencionado recurso deve ser interposto no prazo de dez dias a contar da intimação da sentença, em geral da própria audiência, pois é nela que o juiz deve proferir decisão sobre a lide, aplicando-se aqui a regra geral de contagem dos prazos processuais. Por isso, deve ser excluído o dia do começo e incluído o dia final do prazo recursal. A título de exemplo, se as partes forem intimadas da sentença em uma sexta-feira, o prazo recursal somente se iniciará segunda-feira, salvo se esta não for dia útil, caso em que ele começará a ser computado do primeiro dia útil seguinte. O preparo no recurso inominado deve ser recolhido e comprovado, independentemente de intimação, nas quarenta e oito horas seguintes à interposição, sob pena de deserção. Por simetria, o recorrido possui o prazo de dez dias para oferecer suas contrarrazões, prazo esse que é contado da intimação para tanto, iniciando no primeiro dia útil subsequente e computando o dia do fim. Não há na Lei 9.099/1.995 previsão normativa de recurso específico contra os pronunciamentos interlocutórios do juiz da causa. Apesar disso, algumas turmas recursais insistem em admitir o uso do agravo de instrumento para tanto, com o que não concordamos porque o microssistema recursal da referida lei não dialoga com o macrossistema que o Código de Processo Civil dedicou aos recursos que prevê. Ademais, a Súmula 376 do Superior Tribunal de Justiça já consagrou a orientação segundo a qual "compete à turma recursal processar e julgar o mandado de segurança contra ato de juizado especial", não obstante o Supremo Tribunal Federal tenha se manifestado, por maioria de votos, no sentido de que as decisões interlocutórias proferidas por esses juizados não toleram agravo de instrumento e, tampouco, mandado de segurança (RE 576.847-BA). Contra a decisão proferida no recurso inominado não cabe recurso especial porque o inciso III do artigo 105 da Constituição Federal exige que a decisão recorrida seja originária de tribunal e, como é sabido, as referidas turmas e colégios recursais não ostentam esse predicado. No entanto, o julgado emitido no recurso inominado pode ser impugnado mediante recurso extraordinário, a teor do inciso III do artigo 102 da Lei das Leis. Por fim, vale lembrar que as decisões monocráticas ou colegiadas dos Juizados Especiais também comportam embargos de declaração em cinco dias. Em virtude do princípio da celeridade, esses aclaratórios apenas suspendem o prazo de interposição do recurso inominado.
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NOTAS RELEVANTES:
1. O magistrado que proferiu sentença no Juizado Especial está impedido de funcionar no recurso inominado interposto contra ela.
2. O recurso inominado admite sustentação oral, contanto que realizada por advogado regularmente constituído.
3. Conforme os Enunciados 105 e 106 do FONAJE, aplica-se o artigo 475-J do Código de Processo Civil aos processos em curso pelos Juizados Especiais Cíveis, de modo que o decurso em branco do prazo de quinze dias para o devedor pagar a quantia certa fixada na sentença transitada em julgado atrai a incidência da multa de 10%.
4. A multa diária prevista nos incisos V e VI do artigo 52 da Lei 9.099/1.995 incide desde o descumprimento da decisão que deferiu a tutela antecipada.
5. Conforme Enunciado 81 do FONAJE, a arrematação e a adjudicação dos bens penhorados podem ser impugnadas, por simples pedido, no prazo de cinco dias do ato.
6. A alienação forçada dos bens penhorados (art. 52, VI) tem procedimento diferenciado das expropriações previstas no CPC. Neste último, necessário se faz o edital com oferta pública do bem penhorado para posterior arrematação. No sistema do Juizado, o juiz poderá autorizar o devedor, o credor ou terceira pessoa idônea a tratar da alienação extrajudicial do bem penhorado, a qual se aperfeiçoará em juízo até a data fixada para a praça (bens imóveis) ou leilão (bens móveis). Se o preço oferecido for inferior ao da avaliação, as partes deverão ser ouvidas.

7. Para manejar esse recurso, o recorrente deve construir duas petições. A primeira é de mera interposição e deve ser dirigida ao juiz causa, além de conter o número dos autos, bem como os nomes e a qualificação das partes. Em anexo, o peticionário deve compor o recurso propriamente dito, que será endereçado à turma ou colégio recursal e conter os fundamentos com os quais impugna a decisão hostilizada, bem como o pedido de reforma ou invalidação do julgado.
8. Conforme a Resolução 12/09 do STJ, quando a decisão de turma recursal do juizado especial estadual divergir da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é cabível a reclamação para esse tribunal superior (CF, art. 105, inc. I, "f"), em quinze dias contados da publicação do acórdão que se quer reformar. Entretanto, a reclamação só terá cabimento quando a decisão impugnada contrariar enunciado de súmula ou decisão proferida no julgamento de recursos especiais repetitivos (CPC, art. 543-C).
9. Os doutrinadores THEODORO JÚNIOR e FREITAS CÂMARA defendem o cabimento do agravo de instrumento para a Turma Recursal contra decisão interlocutória que, no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, for capaz de causar lesão grave e de difícil reparação, tal qual reconheceu o Enunciado 2 do I Encontro do Primeiro Colégio Recursal dos Juizados Especiais Cíveis da Capital do Estado de São Paulo.
10. MACIEL, Daniel Baggio. Recurso Inominado. Página eletrônica Isto é Direito. Agosto de 2013.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

UMA NOTA SOBRE A ALIENAÇÃO PARENTAL

No Brasil, a chamada “alienação parental” encontra-se normatizada pela Lei nº 12.318/2010, lamentavelmente desconhecida por muitos e timidamente aplicada pelo Judiciário frente aos numerosos casos em que ela se verifica. Aliás, uma rápida pesquisa jurisprudencial é suficiente para revelar o quanto juízes e tribunais ainda precisam progredir até que estejam culturalmente aptos a reprimir comportamentos dessa natureza, os quais correspondem a ilícitos extremamente graves e que são responsáveis pela criação do que a literatura convencionou batizar de "órfãos de pais vivos" (RICHARD GARDNER)A propósito, o artigo 2º da referida lei considera ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham esses menores sob sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. Segundo a desembargadora gaúcha MARIA BERENICE DIAS, a "alienação parental nada mais é do que uma lavagem cerebral feita pelo guardião, de modo a comprometer a imagem do outro genitor, narrando maliciosamente fatos que não ocorreram ou que não aconteceram conforme a descrição dada pelo alienador”. Sem olvidar o caráter antijurídico dessa prática, ANA MARIA FROTA VELLY prefere explicá-la como um "transtorno psicológico que se caracteriza por um conjunto de sintomas pelos quais um genitor, denominado cônjuge alienador, transforma a consciência de seus filhos, mediante diferentes estratégias de atuação, com o objetivo de impedir, obstaculizar ou destruir seus vínculos com o outro genitor, denominado cônjuge alienado, sem que existam motivos reais que justifiquem essa condição”. No parágrafo único do mencionado dispositivo legal encontram-se exemplificados alguns comportamentos configuradores da alienação parental, a saber: realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor; dificultar o exercício da autoridade parental; dificultar contato da criança ou adolescente com qualquer dos pais; embaraçar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar; omitir deliberadamente do genitor informações relevantes sobre o menor, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; apresentar falsa denúncia contra genitor, familiares dele ou avós, a fim de obstar ou dificultar a convivência com a criança ou adolescente. Ao descrever uma parcela das consequências que a alienação parental produz, o artigo 3º da Lei nº 12.318/2010 realça que condutas assim consideradas ferem o direito fundamental de convivência familiar saudável titularizado pela criança ou adolescente, prejudicam o afeto nas relações com o genitor alienado e com o grupo familiar, constituem abuso moral contra o menor e caracterizam descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental ou decorrentes de tutela ou guarda. Por seu turno, o artigo 4º da referida lei instrumentaliza o juiz com poderes para determinar medidas provisórias tendentes à preservação da integridade psicológica da criança ou do adolescente e à garantia da sua convivência com o genitor alienado, o que poderá realizar de ofício ou a requerimento da parte durante o processo instaurado com o manejo de ação autônoma ou incidental. No campo probatório, sem afastar outros meios considerados hábeis pelo artigo 332 do Código de Processo Civil, o artigo 5º da Lei nº 12.318/2010 estabelece que o juiz poderá determinar a realização de perícia para apurar a alienação parental, prova essa que deverá envolver uma ampla avaliação psicológica ou biopsicossocial e compreender entrevistas pessoais com as partes, exame de documentos constantes dos autos, histórico do relacionamento dos pais e do afastamento deles, cronologia de incidentes, avaliação da personalidade dos envolvidos e exame da forma como o menor se manifesta acerca de eventual acusação contra o genitor. Atento às dificuldades que cercam essa prova, mesmo porque quase sempre a alienação parental é perpetrada de modo clandestino ou dissimulado, o § 2º do artigo 5º impôs ao juiz o dever processual de designar para a função de perito apenas profissionais que comprovarem, mediante histórico profissional ou acadêmico, aptidão para o diagnóstico. Assentados esses aspectos, é importante chamar a atenção para o artigo 6º da Lei nº 12.318/2010 porque é nele que se encontra a autorização para o juiz a lançar mão, cumulativamente ou não, em ação autônoma ou incidental, dos seguintes instrumentos processuais vocacionados a inibir ou atenuar os efeitos da alienação parental: advertir o alienador, ampliar o regime de convivência familiar em favor do alienado, estipular multa a ser paga pelo alienador, determinar o acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial, ordenar a alteração da guarda para compartilhada ou sua inversão, fixar cautelarmente o domicílio do menor e declarar a suspensão da autoridade parental do alienante, tudo isso sem excluir eventual responsabilização civil e criminal do infrator. No tocante à atribuição ou alteração da guarda, o artigo 7º prevê que ela será deferida preferencialmente ao genitor que viabilizar a efetiva convivência da criança ou adolescente com o outro, nas hipóteses em que seja inviável fixar a guarda compartilhada. Por último e não menos importante, o artigo 8º estabelece que a alteração de domicílio do menor é fator irrelevante para a determinação da competência relacionada às ações fundadas em direito de convivência familiar.
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1. MACIEL, Daniel Baggio. Uma nota sobre a alienação parental. Página eletrônica Isto é Direito. Julho de 2013.
2. GARDNER, Richard. Parental Alientation Syndrome vs. Parental Alienation: Which Diagnosis Should Evaluators Use in Child-Custody?
3. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6ªed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
4. VELLY, Ana Maria Frota. Alienação Parental: Uma visão Jurídica e Psicológica.Disponível na página eletrônica do IBDFam.


domingo, 26 de maio de 2013

O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A leitura do inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal permite identificar o devido processo legal como o principal valor jurídico assimilado pela Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 para caracterizar os modelos de direito processual e de estrutura judiciária adotados pelo Brasil. Fala-se nesses dois modelos porque seria impossível cumprir a garantia constitucional do devido processo legal sem a concepção de uma legislação processual que compreenda as cláusulas fundamentais da inafastabilidade da jurisdição, do contraditório, da ampla defesa, da publicidade dos atos processuais, da motivação das decisões judiciais, bem como um conjunto de direitos, deveres e ônus titularizados pelos sujeitos do processo, a fim de que todo direito material ou processual possa ser tutelado pelo Poder Judiciário com os predicados da segurança, eficiência e justiça. Além disso, esse mesmo superprincípio também exige que o nosso ordenamento legal conceba um sistema judiciário cuja organização funcione de modo a executar concretamente o paradigma de direito processual definido pela Constituição Federal. Longe de serem inéditas, essas observações permitem a conclusão de que não há como efetivar a garantia do devido processo legal sem possibilitar, mediante recursos dirigidos a outra instância judiciária, a revisão das decisões emanadas do primeiro grau de jurisdição, quando estas forem suspeitas de error in judicando ou error in procedendo, pois é certo que a criação de restrições indiscriminadas ao direito de recorrer ao segundo grau de jurisdição aniquilaria uma significativa parcela dos atributos que o processo judicial precisa reunir para ser considerado devido. Por esse motivos, ninguém pode duvidar que o duplo grau de jurisdição constitui um valor congênito ao princípio constitucional do devido processo legal, conclusão esta a que também parece haver chegado eminente ministro ADHEMAR FERREIRA MACIEL (O Devido Processo Legal e a Constituição Brasileira de 1988. Revista de Processo, São Paulo, ano 22, nº 85, 1997). Em reforço a essas considerações, é importante observar que o artigo 92 da Constituição Federal empregou sucessivas vezes a mesma fórmula ao instituir os juízes e os tribunais regionais federais, os juízes e os tribunais do trabalho, os juízes e os tribunais eleitorais, os juízes e os tribunais militares, os juízes e os tribunais dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, fórmula essa que constituiu diferentes graus de jurisdição justamente para poder concretizar o imperativo constitucional contido no inciso LV do artigo 5º e permitir a revisão das decisões judiciais, notadamente daquelas proferidas no primeiro grau de jurisdição. Mas as evidências da natureza constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição não se esgotam nessas constatações. Com efeito, perceba que a Constituição Federal possui vários dispositivos que disciplinam as competências dos tribunais e não esconde a preocupação de proporcionar o acesso dos jurisdicionados a uma segunda instância judiciária para a revisão das decisões resultantes do primeiro grau de jurisdição. Com efeito, na aliena “a” do inciso II do artigo 102 o texto constitucional defere ao Supremo Tribunal Federal a competência para julgar o recurso ordinário manejado contra decisão denegatória de habeas-corpus, habeas-data, mandado de injunção ou mandado de segurança da competência originária dos tribunais superiores, vale dizer, quando estes tribunais atuarem como órgãos judiciais de única instância no julgamento dessas quatro ações constitucionais. Já a alínea “b” do inciso II do artigo 105 da Constituição da República atribui ao Superior Tribunal de Justiça a competência para julgar recurso ordinário interposto contra decisão denegatória em mandado de segurança decidido em única instância pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Isso significa que também se insere nas funções do Superior Tribunal de Justiça o exercício de competência típica de um órgão judicial situado no segundo grau de jurisdição. Por sua vez, o inciso II do artigo 108 da Constituição Federal confere aos tribunais regionais federais a competência para julgar, em sede de recurso e no segundo grau de jurisdição, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição, o que robustece ainda mais a tese de que o duplo grau de jurisdição é um princípio constitucional. Por simetria ao inciso II do artigo 108 e porque o artigo 125 da Constituição Federal determinou que os Estados organizassem suas próprias Justiças com observância dos princípios nela estabelecidos, as Constituições Estaduais e as leis locais de organização judiciária devem conter dispositivos semelhantes atribuindo aos respectivos tribunais a competência para julgar, em grau de recurso, as causas decididas no primeiro grau de jurisdição pelos juízes de direito. Colocada a questão nesses termos, ao contrário das conclusões a que chegou o ministro MOREIRA ALVES no agravo regimental interposto no agravo de instrumento nº 151.641, não se diga que os referidos dispositivos constitucionais encerram meras regras de competência, sem lastro nos princípios que vertem da Constituição Federal. Com a devida vênia daqueles que defendem a tese preconizada pelo Supremo Tribunal Federal, tomá-la em comunhão implica reduzir a hermenêutica constitucional a um singelo ato de leitura da norma, alheio à eficácia de vários outros métodos de interpretação normativa, entre os quais estão o sistemático, o histórico, o lógico e o autêntico. Em verdade, no atual estágio da consciência jurídica alçada pela doutrina brasileira, a única discussão legítima que se pode admitir em torno do duplo grau de jurisdição não reside propriamente na natureza constitucional desse princípio, mas sim em que circunstâncias e até que ponto ele pode ser mitigado quando concorrer com outra garantia constitucional, a exemplo da razoável duração do processo e da efetividade das decisões judiciais. Uma franca demonstração de que podem ocorrer situações em que dois ou mais princípios constitucionais de direito processual aparentemente se antagonizam está no parágrafo terceiro do artigo 515 do Código de Processo Civil, que autoriza o tribunal a julgar desde logo o mérito do processo quando prover a apelação para reformar a sentença de mera extinção (artigo 267). Nessa particular situação prevista no artigo 515, não é difícil constatar a prevalência do princípio da razoável duração do processo, pois o pedido inicial será decidido em única instância. Contudo, se o processo não estiver em condições de imediato julgamento ou houver questão de fato a ser decidida, o tribunal deverá restituir os autos ao juiz da causa para a emissão da sentença de mérito, contra a qual caberá nova apelação, o que fará prevalecer o duplo grau de jurisdição sobre aquela garantia constitucional. Com esse simples exemplo, fica claro que o duplo grau de jurisdição é um princípio intimamente associado à segurança jurídica e que, ademais, é absolutamente natural a concorrência episódica dele com outros valores igualmente constitucionais relacionados ao direito processual civil. Portanto, o que verdadeiramente importa ao legislador infraconstitucional é a identificação das grandezas jurídicas em jogo nessas situações fortuitas e o equacionamento de todas elas à luz do devido processo legal. Entretanto, isso não autoriza negar ao duplo grau de jurisdição o status de princípio constitucional, ainda que se imponham a ele flexibilidades que não comprometam a segurança do processo, mesmo porque se é certo que a legislação processual ainda comporta aperfeiçoamentos tendentes a agregar velocidade à prestação jurisdicional, é igualmente correto que as maiores causas da demora nos serviços forenses estão ligadas à incúria do Estado de bem aparelhar e administrar o Poder Judiciário.
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
1. MACIEL, Daniel Baggio. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e sua Jurisprudência. São Paulo: Editora Boreal, 2013 (Coordenador da obra: Daniel Barille da Silveira).

sábado, 18 de maio de 2013

O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO COMO UM PRINCÍPIO SETORIAL DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Que o duplo grau de jurisdição é um princípio setorial do direito processual civil não há a menor dúvida, tanto assim que inexiste divergência a respeito do assunto entre os doutores. Aliás, ADA PELLEGRINI GRINOVER (1975, p. 138) vai além ao relacioná-lo ao lado de vários outros princípios reconhecidamente constitucionais e ensina que "o duplo grau de jurisdição funda-se na possibilidade da decisão de primeiro grau ser injusta ou errada, daí decorrendo a necessidade de permitir-se sua reforma em grau de recurso." No mesmo sentido estão as lições de EDUARDO ARRUDA ALVIM (2012, p. 152), segundo quem o princípio do duplo grau de jurisdição assegura às partes o direito de pleitear a revisão das decisões judiciais proferidas no primeiro grau de jurisdição, quer em virtude de erros de fato ou de direito, o que se liga intimamente à ideia de justiça. Em excelente monografia sobre o tema, GERSON LUIS CARLOS BRANCO (2011) leciona que o duplo grau de jurisdição é o princípio jurídico segundo o qual todas as decisões terminativas de um processo podem ser submetidas a um novo julgamento, por um órgão especializado, geralmente colegiado. É princípio inerente ao sistema, que prevê a possibilidade de recurso contra todas as decisões que encerram o procedimento na primeira instância, com ou sem resolução de mérito. Após explicar que o duplo grau de jurisdição garante a revisibilidade ampla de quaisquer decisões judiciais, preferencialmente por magistrados distintos e localizados em nível hierárquico diferente, SCARPINELLA BUENO (2010, p. 151-154) também avança para considerá-lo um valor integrante do modelo constitucional adotado pelo direito processual civil brasileiro, tanto em virtude do sentimento generalizado de que é recorrível toda decisão no processo civil, como também de várias previsões constitucionais relacionadas à estrutura do Poder Judiciário e à competência dos tribunais. Uma vez mais, não colocamos qualquer reparo nessas orientações doutrinárias, mas a mera afirmação de que o duplo grau de jurisdição é um princípio de direito processual civil não pode ser suficiente para convencer os graduandos sobre o acerto dessa prestigiosa distinção. Daí porque reputamos necessário realçar, ainda que por amostragem, alguns dispositivos do Código de Processo Civil que nele se inspiraram. Felizmente, a investigação da natureza principiológica e setorizada do duplo grau de jurisdição não é tarefa das mais difíceis, pois a ascensão dele sobre vários dispositivos do Código de Processo Civil é manifesta. Aliás, o simples fato de o Código conter um sistema recursal já configura um sintoma bastante forte da ascendência do duplo grau de jurisdição (CPC, arts. 496 e seguintes). Porém, mais do que sintomática, essa influência torna-se certa quando observamos na legislação codificada a previsão de vários recursos vocacionados à ampla revisibilidade de decisões judiciais emanadas do primeiro grau de jurisdição. A título de exemplo, perceba que o artigo 513 define o cabimento da apelação e não estabelece qualquer restrição importante ao uso desse recurso. Com efeito, ela pode ser interposta contra sentença em que há resolução de mérito (art. 269), bem como em face daquela que se limita a encerrar o procedimento sem fornecer uma resposta ao pedido inicial (art. 267). Além disso, ela pode veicular pedidos de reforma e de invalidação da sentença, independentemente do valor atribuído à causa e da natureza do processo em que for emitida (de conhecimento, execução ou cautelar). No mais, a apelação é recurso com o qual se pode insistir no reexame dos fatos versados no processo, na reavaliação das provas e na revisão de todas as matérias de direito que o magistrado deve levar em conta no momento de decidir. Portanto, não há dúvida de que a disciplina legal da apelação e a devolutividade que ela desencadeia têm suas raízes presas ao princípio jurídico segundo o qual as decisões emitidas no primeiro grau de jurisdição estão sujeitas à revisão por órgão judicial situado em patamar hierárquico diferente, a fim de corrigir possíveis erros de procedimento ou de julgamento capazes de injustiças inconciliáveis com os desígnios do processo judicial. Situação similar ocorre com o agravo contra os pronunciamentos do primeiro grau de jurisdição (arts. 522 a 529), mesmo porque o cabimento desse recurso também não está vinculado a previsões legais adstringentes. Com efeito, ele pode ser interposto contra qualquer decisão interlocutória emanada do juiz da causa e serve para provocar a revisão de todos os componentes da questão incidente. Por isso, ele pode objetivar o reexame dos fatos sobre os quais incidiu a deliberação judicial e das eventuais provas associadas ao respectivo episódio processual, além do direito material ou processual utilizado para resolvê-lo. Ademais, é irrelevante o momento em que a decisão interlocutória é proferida pelo juiz. Seja na fase cognitiva do procedimento em primeira instância ou na etapa de cumprimento do julgado, é admissível o agravo para o segundo grau de jurisdição. Logo, é perceptível que o regramento legal do agravo aqui referido também se inspirou na preocupação do legislador com a boa distribuição da justiça e com o aperfeiçoamento das decisões do primeiro grau de jurisdição, o que se conquista proporcionando a revisão desses pronunciamentos mediante recursos dirigidos a um órgão judicial posicionado em plano hierárquico diverso. Mas não é só. Quem ler o artigo 475 Código de Processo Civil observará que a relevância do duplo grau de jurisdição é tamanha que o legislador não fez a menor cerimônia ao atribuir-lhe a máxima concretude quando o transportou, em termos expressos, para a regra que modera a eficácia da sentença proferida contra a União, Estado, Distrito Federal, Município, autarquia ou fundação pública. Fala-se no reexame necessário, instituto que erige o duplo grau de jurisdição ao status de condição para a executividade da sentença proferida em desfavor dessas pessoas jurídicas de direito público. Pelas razões expostas, não há como desconfiar do caráter axiológico e setorizado do duplo grau de jurisdição, cuja origem mais remota repousa na reflexão dominante de que as decisões judiciais devem se caracterizar por um primor de correção e que, por essa razão, elas devem ser suscetíveis a eventuais emendas por órgão judicial situado em nível hierárquico superior àquele que decidiu em primeira instância.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. MACIEL, Daniel Baggio. O duplo grau de jurisdição como um princípio setorial do processo civil. Araçatuba: Página eletrônica Isto é Direito. Maio de 2013.
2. MACIEL, Daniel Baggio. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e sua Jurisprudência. São Paulo: Editora Boreal, 2013 (Coordenador da obra: Daniel Barille da Silveira).
3. MACIEL, Adhemar Ferreira. O Devido Processo Legal e a Constituição Brasileira de 1988. Revista de Processo, São Paulo, ano 22, nº 85, 1997.
4. ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 14a ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
5. ARRUDA ALVIM, Eduardo. Direito Processual Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
6. BRANCO, Gerson Luis Carlos. O duplo grau de jurisdição e sua perspectiva constitucional. São Paulo: Jurid Versão Eletrônica, 2011.
7. SCARPINELLA BUENO, Cássio. Curso sistematizado de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2010.
8. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1991.