sábado, 18 de maio de 2013

O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO COMO UM PRINCÍPIO SETORIAL DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Que o duplo grau de jurisdição é um princípio setorial do direito processual civil não há a menor dúvida, tanto assim que inexiste divergência a respeito do assunto entre os doutores. Aliás, ADA PELLEGRINI GRINOVER (1975, p. 138) vai além ao relacioná-lo ao lado de vários outros princípios reconhecidamente constitucionais e ensina que "o duplo grau de jurisdição funda-se na possibilidade da decisão de primeiro grau ser injusta ou errada, daí decorrendo a necessidade de permitir-se sua reforma em grau de recurso." No mesmo sentido estão as lições de EDUARDO ARRUDA ALVIM (2012, p. 152), segundo quem o princípio do duplo grau de jurisdição assegura às partes o direito de pleitear a revisão das decisões judiciais proferidas no primeiro grau de jurisdição, quer em virtude de erros de fato ou de direito, o que se liga intimamente à ideia de justiça. Em excelente monografia sobre o tema, GERSON LUIS CARLOS BRANCO (2011) leciona que o duplo grau de jurisdição é o princípio jurídico segundo o qual todas as decisões terminativas de um processo podem ser submetidas a um novo julgamento, por um órgão especializado, geralmente colegiado. É princípio inerente ao sistema, que prevê a possibilidade de recurso contra todas as decisões que encerram o procedimento na primeira instância, com ou sem resolução de mérito. Após explicar que o duplo grau de jurisdição garante a revisibilidade ampla de quaisquer decisões judiciais, preferencialmente por magistrados distintos e localizados em nível hierárquico diferente, SCARPINELLA BUENO (2010, p. 151-154) também avança para considerá-lo um valor integrante do modelo constitucional adotado pelo direito processual civil brasileiro, tanto em virtude do sentimento generalizado de que é recorrível toda decisão no processo civil, como também de várias previsões constitucionais relacionadas à estrutura do Poder Judiciário e à competência dos tribunais. Uma vez mais, não colocamos qualquer reparo nessas orientações doutrinárias, mas a mera afirmação de que o duplo grau de jurisdição é um princípio de direito processual civil não pode ser suficiente para convencer os graduandos sobre o acerto dessa prestigiosa distinção. Daí porque reputamos necessário realçar, ainda que por amostragem, alguns dispositivos do Código de Processo Civil que nele se inspiraram. Felizmente, a investigação da natureza principiológica e setorizada do duplo grau de jurisdição não é tarefa das mais difíceis, pois a ascensão dele sobre vários dispositivos do Código de Processo Civil é manifesta. Aliás, o simples fato de o Código conter um sistema recursal já configura um sintoma bastante forte da ascendência do duplo grau de jurisdição (CPC, arts. 496 e seguintes). Porém, mais do que sintomática, essa influência torna-se certa quando observamos na legislação codificada a previsão de vários recursos vocacionados à ampla revisibilidade de decisões judiciais emanadas do primeiro grau de jurisdição. A título de exemplo, perceba que o artigo 513 define o cabimento da apelação e não estabelece qualquer restrição importante ao uso desse recurso. Com efeito, ela pode ser interposta contra sentença em que há resolução de mérito (art. 269), bem como em face daquela que se limita a encerrar o procedimento sem fornecer uma resposta ao pedido inicial (art. 267). Além disso, ela pode veicular pedidos de reforma e de invalidação da sentença, independentemente do valor atribuído à causa e da natureza do processo em que for emitida (de conhecimento, execução ou cautelar). No mais, a apelação é recurso com o qual se pode insistir no reexame dos fatos versados no processo, na reavaliação das provas e na revisão de todas as matérias de direito que o magistrado deve levar em conta no momento de decidir. Portanto, não há dúvida de que a disciplina legal da apelação e a devolutividade que ela desencadeia têm suas raízes presas ao princípio jurídico segundo o qual as decisões emitidas no primeiro grau de jurisdição estão sujeitas à revisão por órgão judicial situado em patamar hierárquico diferente, a fim de corrigir possíveis erros de procedimento ou de julgamento capazes de injustiças inconciliáveis com os desígnios do processo judicial. Situação similar ocorre com o agravo contra os pronunciamentos do primeiro grau de jurisdição (arts. 522 a 529), mesmo porque o cabimento desse recurso também não está vinculado a previsões legais adstringentes. Com efeito, ele pode ser interposto contra qualquer decisão interlocutória emanada do juiz da causa e serve para provocar a revisão de todos os componentes da questão incidente. Por isso, ele pode objetivar o reexame dos fatos sobre os quais incidiu a deliberação judicial e das eventuais provas associadas ao respectivo episódio processual, além do direito material ou processual utilizado para resolvê-lo. Ademais, é irrelevante o momento em que a decisão interlocutória é proferida pelo juiz. Seja na fase cognitiva do procedimento em primeira instância ou na etapa de cumprimento do julgado, é admissível o agravo para o segundo grau de jurisdição. Logo, é perceptível que o regramento legal do agravo aqui referido também se inspirou na preocupação do legislador com a boa distribuição da justiça e com o aperfeiçoamento das decisões do primeiro grau de jurisdição, o que se conquista proporcionando a revisão desses pronunciamentos mediante recursos dirigidos a um órgão judicial posicionado em plano hierárquico diverso. Mas não é só. Quem ler o artigo 475 Código de Processo Civil observará que a relevância do duplo grau de jurisdição é tamanha que o legislador não fez a menor cerimônia ao atribuir-lhe a máxima concretude quando o transportou, em termos expressos, para a regra que modera a eficácia da sentença proferida contra a União, Estado, Distrito Federal, Município, autarquia ou fundação pública. Fala-se no reexame necessário, instituto que erige o duplo grau de jurisdição ao status de condição para a executividade da sentença proferida em desfavor dessas pessoas jurídicas de direito público. Pelas razões expostas, não há como desconfiar do caráter axiológico e setorizado do duplo grau de jurisdição, cuja origem mais remota repousa na reflexão dominante de que as decisões judiciais devem se caracterizar por um primor de correção e que, por essa razão, elas devem ser suscetíveis a eventuais emendas por órgão judicial situado em nível hierárquico superior àquele que decidiu em primeira instância.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. MACIEL, Daniel Baggio. O duplo grau de jurisdição como um princípio setorial do processo civil. Araçatuba: Página eletrônica Isto é Direito. Maio de 2013.
2. MACIEL, Daniel Baggio. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e sua Jurisprudência. São Paulo: Editora Boreal, 2013 (Coordenador da obra: Daniel Barille da Silveira).
3. MACIEL, Adhemar Ferreira. O Devido Processo Legal e a Constituição Brasileira de 1988. Revista de Processo, São Paulo, ano 22, nº 85, 1997.
4. ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 14a ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
5. ARRUDA ALVIM, Eduardo. Direito Processual Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
6. BRANCO, Gerson Luis Carlos. O duplo grau de jurisdição e sua perspectiva constitucional. São Paulo: Jurid Versão Eletrônica, 2011.
7. SCARPINELLA BUENO, Cássio. Curso sistematizado de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2010.
8. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1991.

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