segunda-feira, 25 de novembro de 2019

O EFEITO DEVOLUTIVO NA APELAÇÃO

Em artigo publicado anteriormente, já mostramos que as noções sobre o efeito devolutivo praticamente se fundem com a definição de recurso, porquanto o manejo desse meio de impugnação proporciona, por natureza, a devolução das atividades cognitiva e decisória no mesmo processo em que foi proferido o pronunciamento jurisdicional contrariado. Então, sintetizando as orientações fornecidas, pode-se afirmar que a devolutividade é o efeito que circunscreve as dimensões (extensão e profundidade) daquilo que será examinado e decidido no recurso. O caput do artigo 1.013 confirma essa explicação ao prever, embora em outras palavras, que a apelação restitui ao tribunal o exame da matéria contrariada, afirmativa essa que seria completa se apontasse não apenas o trabalho analítico que incumbe ao órgão jurisdicional, mas também a atividade decisória dele decorrente, pois a cognição daquilo que é suscitado no recurso é realizada com a finalidade de decidir a pretensão nele formulada. Portanto, o efeito devolutivo demarca não apenas o que está afetado para exame do tribunal, mas também o julgamento do pedido recursal em si, afinal, não é legítimo realizar um trabalho cognitivo mais amplo e decidir apenas parte daquilo que foi postulado, assim como não é lícito desempenhar uma atividade cognitiva reduzida e julgar além do que foi pretendido. Feitas essas considerações, cumpre observar que o caput do artigo 1.013 é uma derivação do princípio dispositivo (arts. 2º, 141 e 492) e preconiza que “a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada” ("tantum devolutum quantum apellatum"), para significar que a extensão da referida devolução cognitiva e decisória é determinada pela abrangência do recurso. Em termos mais simples, a apelação pode alcançar a integralidade ou fração da sentença (além das decisões interlocutórias que não precluíram na fase de conhecimento) e, portanto, ser total ou parcial. A título de exemplo, se a sentença condenar o réu a indenizar o dano patrimonial e a compensar o dano moral, mas o demandado apelar somente dessa última prestação (art. 1.002), o tribunal ficará impedido de conhecer e decidir a respeito daquela, pois a devolutividade da cognição e do julgamento estará limitada ao alcance do recurso. Mas também é preciso observar que o artigo 1.013 contém outros dois parágrafos complementares da regulação atribuída à devolutividade da apelação, mais propriamente sobre a profundidade das atividades cognitiva e decisória a serem desempenhadas pelo tribunal. A propósito, o parágrafo 1º estabelece que “serão, porém, objeto de apreciação e julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que não tenham sido solucionadas, desde que relativas ao capítulo impugnado.” Isso significa que, respeitados os limites eventualmente impostos pela extensão da apelação, o tribunal não ficará adstrito a conhecer e decidir unicamente acerca da argumentação exposta no recurso, pois a dialética nele empregada pode não haver compreendido tudo o que foi articulado no primeiro grau de jurisdição e submetido ao contraditório. Portanto, o tribunal deve examinar a integralidade das teses, matérias, questões e argumentos trazidos ao processo, contanto que relacionados à extensão da apelação, não apenas o que foi considerado na motivação da sentença e nas razões do recurso. Por seu turno, o parágrafo 2º ainda prevê o seguinte: “Quando o pedido ou a defesa tiver mais de um fundamento e o juiz acolher apenas um deles, a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento dos demais.” Com efeito, entende-se por fundamento o substrato de fato ou de direito de que decorre, segundo a ordem normativa, o efeito jurídico consistente no provimento do pedido inicial, no desprovimento dele ou na extinção do processo sem resolução do mérito. Logo, se a pretensão ou a defesa estiver apoiada em mais de um fundamento e o juiz se pronunciar somente a respeito de um ou alguns deles, a apelação, ainda assim, restituirá ao tribunal o exame de todos, mesmo que o recurso os tenha suscitado novamente. Por último, embora não em virtude dessa devolutividade, mas sim da translatividade da apelação, é preciso recordar que ela transfere para o tribunal a cognição e o pronunciamento das matérias de ordem pública, cujo exame sabidamente não depende de alegação da parte, do terceiro que estiver intervindo no processo, do fiscal do ordenamento jurídico que possa estar oficiando nele e, tampouco, da anterior apreciação pelo juiz da causa, razão pela qual o efeito translativo representa uma autêntica exceção ao princípio do "tantum devolutum quantum apellatum", além de não encontrar óbice na "reformatio in pejus".
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MACIEL, Daniel Baggio. O efeito devolutivo na apelação. Araçatuba: Isto é Direito. Novembro de 2019.

quarta-feira, 27 de março de 2019

A OBRIGAÇÃO ALIMENTAR DOS AVÓS E O CHAMAMENTO À LIDE

Uma das matérias mais incompreendidas no Direito de Família é a participação dos avós no sustento dos netos, tanto que uma rápida pesquisa sobre ela é capaz de mostrar uma variação extraordinária nas interpretações sobre o artigo 1.698 do Código Civil, em que está previsto o seguinte: “Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.” O objetivo deste artigo é, pois, contribuir para a uniformização das exegeses realizadas sobre essa norma de direito federal. Com efeito, a primeira inferência sobre o artigo 1.698 é a de que os alimentos necessários aos filhos devem ser suportados por seus genitores, proporcionalmente às possibilidades financeiras destes e com primazia sobre quaisquer outros parentes indicados no artigo 1.697 do Código Civil, assim os demais ascendentes, os descendentes e os irmãos germanos ou unilaterais. É assim porque a primeira parte do artigo 1.698 faz alusão expressa ao “parente que deve prestar os alimentos em primeiro lugar”, isto é, aos pais. A segunda indução sobre essa norma é a de que os alimentos pretendidos pelos descendentes só podem ser exigidos dos avós quando os pais não existirem ou não puderem satisfazê-los integralmente, caso em que os ascendentes de segunda classe serão chamados a pensionar (os paternos e os maternos). Fala-se, portanto, na subsidiariedade e na complementariedade desse mister, que estão nítidas no artigo 1.698, pois ele estabelece que os ancestrais de grau imediato apenas serão chamados a concorrer para os alimentos, ainda que no próprio processo, “se o parente obrigado em primeiro lugar não estiver em condições de suportar totalmente o encargo.” A terceira e não menos importante conclusão sobre esse dispositivo é a de que, havendo vários sujeitos passivos da obrigação alimentar (pai, mãe, avós), todos eles devem contribuir proporcionalmente para o pensionamento, sem que se possam constituir grupos de responsabilidades segundo as linhas sucessórias a que pertencem, o que evidencia a obrigatoriedade da formação do litisconsórcio passivo entre eles, porquanto a regra examinada afirma categoricamente que, “sendo várias as pessoas obrigadas, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos.” É justamente em virtude destas intelecções que a parte final do artigo 1.698 oportuniza o chamamento à lide de todos aqueles que devem cooperar para o pensionamento, solução essa extremamente racional e equitativa, pelo simples fato de que a interpretação inversa legitimaria o reclamante a abastecer completamente suas necessidades apenas junto às pessoas que, por conveniência dele ou do seu representante legal, fossem escolhidas para a ação de alimentos, o que resultaria o empobrecimento injusto dos demandados e, com manifesto nexo causal, o enriquecimento das pessoas olvidadas. Por estas razões e com ênfase na divisibilidade dos alimentos, a única exegese possível para o artigo 1.698 é a de que o reclamante tem o dever de demandar contra ambos os pais que exercerem atividades remuneradas e, quando estes não puderem suportar sozinhos o encargo ou não existirem, em face de todos os ascendentes da classe imediata (avós paternos e maternos), a fim de que a prestação seja diluída entre os familiares de ambas as linhas, na proporção dos recursos de cada um. Fala-se na formação de um litisconsórcio obrigatório e simples na ação de alimentos. Obrigatório porque o artigo 1.698 torna imperativo o chamamento dos ascendentes à lide, além de impor a diluição do pensionamento também entre os avós paternos e maternos. Simples porque, diferentemente do litisconsórcio unitário, o juiz não precisa decidir uniformemente o processo para todos os réus, afinal, são comuns as distinções entre as capacidades contributivas deles. É neste sentido que se encontra o acórdão da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, proferido no Recurso Especial nº 658.138 – RS, da relatoria do Ministro Fernando Gonçalves, em torno do qual gravitaram outros onze pronunciamentos constitutivos da Súmula 596, que modificou a interpretação pretoriana formada na vigência Código Civil revogado (art. 397) e harmonizou a jurisprudência sobre o artigo 1.698 do Código Civil de 2.002. Do acórdão em referência consta a seguinte "ratio decidendi": “Em primeira análise, a interpretação literal do dispositivo parece conceder uma faculdade ao autor da ação de alimentos de trazer para o polo passivo os avós paternos e/ou os maternos, de acordo com a sua livre escolha. Todavia, essa não representa a melhor exegese. É sabido que a obrigação de prestar alimentos aos filhos é, originalmente, de ambos os pais, sendo transferida aos avós subsidiariamente, em caso de inadimplemento, em caráter complementar e sucessivo. Neste contexto, mais acertado o entendimento de que a obrigação subsidiária – em caso de inadimplemento da principal – deve ser diluída entre os avós paternos e maternos, na medida dos seus recursos, diante de sua divisibilidade e possibilidade de fracionamento. Isso se justifica, pois a necessidade alimentar não deve ser pautada por quem paga, mas sim por quem recebe, representando para o alimentado maior provisionamento, tantos quantos réus houver no polo passivo da demanda. Note-se que esse entendimento está alinhavado com outros julgados desta Corte (...).” E o resultado nos casos em que o requerente não constitui o litisconsórcio entre todos os obrigados ou resta indeferido o chamamento determinado pelo artigo 1.698 do Código Civil, só pode ser a inexistência da sentença para quem foi imunizado contra a jurisdição e a invalidade dela para quem litigou sozinho, do que deriva a necessidade de repetir os atos praticados durante o respectivo procedimento, aproveitando aqueles que não foram contaminados por essa patologia (CPC, art. 282). Entretanto, verificado o trânsito em julgado sem a formação inicial ou superveniente do litisconsórcio, a sentença condenatória daqueles que foram demandados isoladamente delineia a mencionada nulidade, inclusive porque não fracionada, entre todos os ascendentes obrigados, a responsabilidade alimentar prevista em lei, o que só seria possível com a citação de todos eles e a asseguração do contraditório, aqui vetorizado não apenas contra a reclamante, mas também entre os próprios requeridos na ação de alimentos, pois a eles interessam a alegação, a contestação e a prova das capacidades contributivas próprias e alheias. Logo, as afecções decorrentes do desmantelamento do litisconsórcio obrigatório e da supressão de um contraditório com essa dimensão (contraddittorio non integro) produzem consequências não só para os ascendentes que o autor isentou da jurisdição, mas também aos ancestrais a quem o pensionamento for imposto sem a contribuição daqueles (CF, art. 5º, inc. LIV). A respeito da obrigatoriedade de vários sujeitos no mesmo vértice da relação processual, José Rogério Cruz e Tucci recorda que há situações em que a lei, "propter opportunitatem", impõe a formação do litisconsórcio, sobretudo para preservar a harmonia dos julgados, razão pela qual ela acaba obstruindo a legitimidade para que um protagonista se apresente sozinho em juízo, ativa ou passivamente. Também segundo o professor da Universidade de São Paulo, ainda existem hipóteses em que, pela natureza da relação jurídica debatida, é exigida a participação de mais de um demandante ou demandado no processo, vale dizer, todos aqueles que são titulares de um mesmo direito subjetivo ou que estão compreendidos por um vínculo jurídico comum, caso em que a obrigatoriedade do litisconsórcio é definida pelo direito material controvertido (secundum tenorem rationis). Mas o importante é que, nesses dois casos, o litisconsórcio desponta necessário (CPC, art. 114) e se sobrepõe à autonomia da vontade do jurisdicionados. Assim, quer por força de lei ou da natureza do vínculo jurídico judicializado, haverá ilegitimidade de parte (CPC, arts. 17 e 485, inc. VI) e faltará um pressuposto processual (CPC, arts. 239 e 485, inc. IV) sempre que ele não for integrado pela totalidade dos personagens exigidos na legislação ou que compõem a relação de direito material litigiosa. Estas conclusões também se encontram na obra de Ovídio Araújo Baptista da Silva, para quem a incompleta formação do litisconsórcio passivo necessário constitui, em primeira análise, uma questão de "legitimatio ad causam", sob a consideração de que a presença de todos os seus protagonistas é condição prévia para que se possa controverter sobre a relação jurídica posta em juízo. Mas ela também impacta na existência e na validade do processo, pois falta da citação de litisconsorte necessário resulta, para aquele que foi segregado, a inexistência da relação processual, ao passo que, para quem litigou isoladamente, ela implica a ausência de um pressuposto de formação e desenvolvimento válido do processo. 
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MACIEL, Daniel Baggio. A obrigação alimentar dos avós e o chamamento deles à lide. Araçatuba: Página eletrônica Isto é Direito. Março de 2019.