domingo, 20 de abril de 2014

RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA E OBJETIVA

É princípio geral de direito que quem causa dano a outrem deve indenizar. Ao ser transportado para a lei, esse princípio sofre regramento técnico pelo legislador, que traça modelos de conduta e estabelece sanções para a sua inobservância, no caso, a indenização. Na estrutura das normas legais que regulam a responsabilidade civil, ora a culpa se faz presente como parte integrante da conduta lesiva, ora ela é dispensada para que o comportamento do agente resulte a obrigação de indenizar. A título de exemplo, comparem-se as previsões dos artigos 932 e 951 do Código Civil. Por essa razão, fala-se em responsabilidade subjetiva para identificar a obrigação de indenizar inspirada na ideia de culpa e em responsabilidade objetiva para assinalar aquela apoiada na teoria do risco, que dispensa a existência desse elemento subjetivo. Tradicionalmente, somente se proclama a responsabilidade civil quando o sujeito atuar culposamente e causar prejuízo a outrem mediante ato ilícito, tal qual previsto no artigo 186 e na primeira parte do artigo 927 do Código Civil. Entretanto, há mais de um século a doutrina percebeu que esse mecanismo clássico de responsabilização já não era mais suficiente para solucionar adequadamente novos casos que reclamavam indenização, especialmente aqueles deflagrados a partir da transformação dos meios de produção, pois a prova da culpa muitas vezes constituía sério obstáculo para a justa reparação dos lesados. É nesse ambiente que surge a “doutrina objetiva”, que encontrou novos métodos para determinar a responsabilidade civil do agente, através de um processo hermenêutico que foi se desvencilhando gradativamente daqueles limites restritivos impostos pela concepção tradicional da responsabilidade civil. O primeiro processo técnico criado para superar as dificuldades geradas pelo modelo tradicional foi o da “culpa presumida”, que representou uma ponte para alcançar posteriormente a responsabilidade objetiva. Como observa RUI STOCO (2.001, p. 108): “A culpa presumida trata-se de solução transacional ou escala intermediária, em que se considera não perder a culpa a condição de suporte da responsabilidade civil, embora aí já se deparem indícios de degradação como elemento etiológico fundamental da reparação e aflorem fatores de consideração da vítima como centro da estrutura ressarcitória, para atentar diretamente para as condições do lesado e a necessidade de ser indenizado.” A distinção entre a concepção tradicional da responsabilidade civil e o mecanismo da culpa presumida é o “ônus da prova”. Na teoria clássica, a culpa do agente deve ser demonstrada pelo lesado, juntamente com os demais pressupostos indicados pelo artigo 186 e pela primeira parte do artigo 927 do Código Civil (conduta lesiva, nexo causal e dano). Na culpa presumida, opera-se a inversão do ônus da prova, incumbindo ao agente demonstrar uma “causa excludente da responsabilidade” para afastar a obrigação de reparar o prejuízo, a exemplo de caso fortuito ou força maior. Como resultado da evolução da responsabilidade civil, nasce no século XIX a teoria da responsabilidade sem culpa, que se convencionou chamar de “teoria do risco”. Com a aplicação dela, afasta-se a verificação da culpa do agente para obrigá-lo a indenizar e sequer existe a necessidade de investigar a ilicitude do comportamento dele, bastando a simples existência da conduta causadora do dano. É com muita propriedade que MARIA HELENA DINIZ (2.002, p. 11) lembra o fundamento da teoria da responsabilidade sem culpa, ao assinalar que: “Ela representa uma objetivação da responsabilidade, sob a ideia de que todo risco deve ser garantido, visando a proteção jurídica da pessoa humana, em particular dos trabalhadores e vítimas de acidentes, contra a insegurança material. A noção de risco prescinde da prova da culpa do lesante, contentando-se com a simples causação externa, bastando a prova de que o evento decorreu do exercício da atividade para que o prejuízo por ela criado seja indenizado. Baseia-se no princípio ‘ubi emolumentum ibi ius’, isto é, a pessoa que se aproveitar dos riscos ocasionados deverá arcar com suas consequências.” Acolhendo a teoria do risco para as situações em que ela se mostra necessária, mas sem afastar a culpa como fundamento da responsabilidade patrimonial, o Código Civil disciplinou casos de responsabilidade objetiva em vários dispositivos, em uma franca demonstração de que ambas as teorias não se excluem, antes se completam. A título de exemplo, a parte superior do artigo 927 prevê a obrigação de reparar o dano quando alguém praticá-lo culposamente mediante ato ilícito, ao passo que o parágrafo único estabelece que haverá responsabilidade, independentemente de culpa, nas hipóteses em que a lei especificar ou quando a atividade normalmente exercida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Logo, não é difícil concluir que a responsabilidade civil objetiva pode derivar de previsão contida em norma objetiva ou do risco potencial provocado por determinadas atividades humanas.
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1) MACIEL, Daniel Baggio. Responsabilidade civil subjetiva e objetiva. Araçatuba: Página Eletrônica Isto é Direito. Maio de 2014.
2) DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – Responsabilidade Civil. 16a ed. v. VII. São Paulo: Saraiva, 2002.  
3) STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
4) Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
5) Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
6) Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:
I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;
II - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;
III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;
IV - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;
V - os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia.
7) Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.

domingo, 13 de abril de 2014

A INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

A redação do artigo 3º do Código de Processo Civil projetado guarda parcial simetria com o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” Fala-se na garantia constitucional do direito de ação ou da inafastabilidade da jurisdição. As garantias constitucionais podem ser definidas como instrumentos ou institutos que visam a assegurar, especialmente em face do próprio Estado, a obediência, a capacidade de exercício e a efetividade de usufruição de determinados direitos individuais, coletivos, sociais ou políticos reconhecidos na Constituição Federal, assim também certas instituições consideradas importantes para a realidade social e que, ao receberem a tutela constitucional, reflexamente acabam protegendo um, alguns ou vários dos direitos nela proclamados. Daí porque grande parte dessas garantias constitucionais corresponde a disposições declaratórias de direitos reconhecidos em relação ao Estado e tem o objetivo de limitar o poder do qual ele está investido. Uma delas é justamente a que assegura o direito de ação a qualquer sujeito que afirmar lesão ou ameaça a direito, afinal, é mediante a ação processual que se conduz à apreciação do Poder Judiciário pretensões jurídicas que reclamam solução através do processo. Em outros termos, o inciso XXXV do artigo 5º está proclamando, a um só tempo, que a ação é o instrumento apto para exigir a prestação jurisdicional do Estado, que é vedado a ele legislar criando entraves para o acesso à Justiça ou à permanência dos jurisdicionados em juízo e que, ademais, são indispensáveis atuações estatais tendentes à remoção dos óbices existentes para tanto, dentre os quais se destacam os obstáculos de ordem econômica e aqueles ligados às dificuldades de distribuição dos órgãos judiciais em todo o território nacional. Logo, se o processo começa por iniciativa da parte (NCPC, art. 2º) e é proibido subtrair do Poder Judiciário o exame de situações que podem representar lesão ou ameaça a direito (NCPC, art. 3º), fica claro que o citado inciso XXXV está assegurando, indistintamente a todos, os direitos à ação, ao processo e a uma resposta tempestiva e eficaz para as pretensões nele veiculadas, garantia essa tão vigorosa que não comporta supressão ou restrição pelo poder constituinte derivado ou reformador (CF, art. 60, § 4º, inc. IV). Enfim, ao reproduzir parte da norma constitucional que garante a inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inc. XXXV), o artigo 3º do Código projetado reafirma o poder, o dever e o monopólio do Estado de mediar a solução das lides através do processo judicial, mas lembra de ressalvar a utilização da arbitragem, no parágrafo 1º desse dispositivo legal. A propósito, a arbitragem pode ser definida como um método legal e alternativo de resolução de controvérsias envolvendo direitos patrimoniais e disponíveis rivalizados por pessoas físicas, jurídicas ou mesmo certos entes despersonalizados, com o qual um ou mais árbitros escolhidos pelas partes exercem o poder convencional de resolver determinado litígio, mediante a anuência prévia dos contratantes no tocante à decisão que vier a ser proferida. Embora subordinada a regras específicas (Lei nº 9.307/96), a atividade arbitral guarda semelhanças com a atividade judicial, pois ambas são vocacionadas à pacificação de conflitos, quer de forma amistosa ou impositiva para os litigantes. Além disso, não há distinção ontológica entre os poderes conciliatórios, instrutórios e decisórios dos quais estão investidos os árbitros e os juízes, razão bastante para o Código projetado equiparar a eficácia das sentenças por eles proferidas e considerá-las, indistintamente, títulos executivos judiciais (NCPC, art. 529, incs. I e VII). Portanto, nos casos e formas definidas pela legislação especial, as partes podem renunciar à prerrogativa de invocar a tutela jurisdicional do Estado para a solução de certos litígios e substituí-la pela arbitragem, mediante convenção expressa e que, ademais, é passível de ser oposta como matéria de defesa, caso uma delas transgrida esse ajuste e acesse o Poder Judiciário. Em outros termos, aquele que pactuar a arbitragem e for demandado perante a Justiça Pública poderá impugnar o pedido arguindo, em petição autônoma, a existência da respectiva convenção (art. 345), a fim de obter do juiz uma sentença de finalização do procedimento sem resolução de mérito (art. 348). Porém, cabe ressaltar que é vedado ao juiz conhecer de ofício a respeito desse tipo de convenção (art. 349) e que a falta de oposição dela no momento oportuno resulta a preclusão do direito do réu de suscitá-la mais tarde (art. 350).
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1. MACIEL, Daniel Baggio. A inafastabilidade da jurisdição no novo Código de Processo Civil. Araçatuba: Página eletrônica Isto é Direito. Abril de 2014.
NOTA RELEVANTE: Este artigo foi composto segundo os dispositivos constantes do projeto de lei que institui o novo Código de Processo Civil. 
Art. 3º. Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. 
§ 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei. 
§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. 
§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por magistrados, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.