quarta-feira, 1 de junho de 2011

A AÇÃO DE REGRESSO DO ESTADO

As pessoas jurídicas, dentre elas o Estado, são incapazes de ações no plano naturalístico. Quem age em nome do Estado são os seus agentes, aos quais incumbe a realização de atividades que se inserem nos limites da sua competência ou para as quais foram contratados. Ao agir ou se omitir culposa ou dolosamente e causando dano a terceiro, o agente público vincula o Estado, tornando-o objetivamente responsável pela reparação do prejuízo causado ao particular. Porém, uma vez configurado o comportamento culposo ou doloso do agente estatal, deve o Poder Público, em vista do princípio da indisponibilidade da coisa pública, mover-lhe ação regressiva para se ressarcir de tudo aquilo que pagou ao particular já indenizado. Este é o conteúdo da parte final do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, que assegura o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Assim, com base no mencionado dispositivo constitucional, em razão do dano sofrido pela vítima, surgem duas responsabilidades patrimoniais: a do Estado, que é de natureza objetiva, e a do autor do dano, que tem fundamento na culpa. Diante da dupla responsabilidade que existe em casos tais, muito se tem debatido a respeito da legitimação passiva para ação de indenização a ser movida pelo lesado. Sustenta-se, de um lado, que a Constituição Federal onerou exclusivamente as pessoas jurídicas de direito público, obrigando-as pela indenização dos prejuízos que seus agentes causarem a terceiros. Segundo este entendimento, ao experimentar o dano, só resta ao particular ajuizar a ação adequada contra a pessoa jurídica, que, após ressarci-lo, remanesce com o direito de regresso contra o agente causador do dano. De outro lado, argumenta-se que, muito embora a Constituição Federal tenha criado responsabilidade objetiva para as pessoas jurídicas de direito público, não há qualquer obstáculo para que o lesado proponha ação indenizatória contra quem lhe parecer conveniente, isto é, apenas contra o Estado, apenas contra o agente que lhe provocou o prejuízo ou contra ambos, em litisconsórcio passivo facultativo. Há que se observar, entretanto, que a responsabilidade objetiva que recai sobre a pessoa jurídica não é extensiva ao autor do dano, que responde patrimonialmente perante o lesado ou diante do Estado apenas se restar provado culpa ou dolo de sua parte. Pela análise do mencionado artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição, vê-se que o legislador constituinte realmente não almejou obstaculizar o direito do lesado de voltar-se contra o autor do dano, mas apenas facilitar o acesso à indenização contra o Estado por comportamentos lesivos de seus agentes. Conforme a dicção do artigo 5º, incisos V e X, não seria razoável a Constituição Federal assegurar a proteção a um número expressivo de direitos fundamentais da pessoa, inclusive contra o próprio Estado, garantindo a eles o direito à indenização do dano material e moral, para depois limitar tais disposições impedindo que o lesado exigisse a reparação diretamente do autor do dano. Assim, não resta dúvida de que o lesado pode eleger contra quem propor a demanda indenizatória, segundo a sua conveniência. Deste modo, ele poderá direcionar a pretensão indenizatória inclusive contra o agente causador do dano e contra a pessoa jurídica que estiver igualmente obrigada a repará-lo. Questão tormentosa nos tribunais é a possibilidade ou não de o Estado denunciar à lide o agente causador do dano, quando for chamado a reparar um dano sofrido pelo particular. Neste campo os posicionamentos se dividem porque há entendimento de que a denunciação da lide afigura-se obrigatória, sob pena de o Estado perder o direito de regresso contra o seu funcionário, como, ademais, determina o artigo 70, inciso III, do Código de Processo Civil (RT 690, p. 100). Há, de outra banda, posicionamento no sentido de que a admissão da denunciação à lide nestes casos implica introduzir novo fundamento na demanda e na modificação da sua “causa petendi”, isto é, a discussão em torno da culpa do agente causador do dano, o que não se pode conceber na processualística. Nesse sentido o acórdão relatado pela Juíza Valéria Maron, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, proferido na apelação cível 7.387 (j. 16.10.96): "RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - Ação pleiteada pela viúva de deputado falecido em acidente de trânsito. Demandada a administração pública por responsabilidade objetiva, descabe a denunciação da lide ao servidor, porque implica na introdução de fundamento novo (dolo ou culpa), estranho à "causa pretendi" da ação principal. O trabalho do parlamentar não se resume àquele realizado em seu gabinete ou no plenário. Inexistência de prova de culpa da vítima. A pensão mensal há de ser fixada levando em consideração os ganhos do "de cujus" por ocasião de sua morte. Segundo a jurisprudência dominante, o montante do dano moral deve ser fixado em 100 salário mínimos." No Superior Tribunal de Justiça há entendimento mais flexível no tocante à introdução de fundamento novo na lide, concluindo, porém, pela facultatividade da denunciação, a critério do juiz segundo as circunstâncias do caso: "RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - Administrativo - Denunciação da lide - Direito de regresso - Agente do Estado - Inexistência de obrigatoriedade - Culpa objetiva e subjetiva - Adição de fundamento novo - Precedentes do STJ - CPC, artigo 70, III - CF/88, artigo 37, parágrafo sexto. A denunciação da lide ao agente do Estado em ação fundada na responsabilidade prevista no artigo 37, parágrafo sexto, da CF/88 não é obrigatória, vez que a primeira relação jurídica funda-se na culpa objetiva e a segunda na culpa subjetiva, fundamento novo não constante da lide originária" (STJ - EDiv. em Resp. nº 313.886 - RN - 1ª Seção - Rel. Ministra Eliana Calmon, J. 26.02.2004, DJ 15.03.2004). Porém, há ainda forte corrente doutrinária e jurisprudencial que interpreta restritivamente a mencionada norma que trata da denunciação à lide daquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar em ação regressiva o prejuízo do que perder a demanda. Nessa linha, conforme enfatiza Carlos Roberto Gonçalves (Responsabilidade Civil, Saraiva, 1.994, p. 153), o artigo 70, inciso III, do Código de Processo Civil, apenas cria a obrigatoriedade da denunciação “quando, resolvida a lide principal, torna-se automática a responsabilidade do denunciado, independentemente de discussão de culpa ou dolo (casos das seguradoras), isto é, sem a introdução de um fato ou elemento novo”. Em outros termos, quando a responsabilidade do terceiro não depender de sentença em processo de conhecimento, o réu deve valer-se do mecanismo da denunciação à lide, sob pena de perder o direito de acioná-lo em ação autônoma. No caso da ação de indenização promovida pelo particular contra o Estado, importa assinalar que o agente causador do dano somente terá responsabilidade se provada culpa ou dolo de sua parte em processo de cognição exauriente. Não sendo automático o ônus ressarcitório, a denunciação à lide do agente público deixa de ser obrigatória e passa a depender, pensamos, das circunstâncias de cada caso, mais propriamente da postura processual que o Poder Público adotar ao defender-se da pretensão indenitária. Por esse raciocínio, se na resposta à inicial da ação indenizatória o Estado admite a culpa do seu agente, é de se permitir a denunciação à lide, até mesmo em observância ao princípio da economia processual. Em casos tais, diante da falta de resistência ao pedido indenizatório, dificilmente alguma discussão altamente complexa surgirá no decorrer do processo, em detrimento do autor. Logo, para se evitar ulterior ação regressiva do Estado contra o agente público, não haverá prejuízo algum em se admitir a denunciação à lide. Em sentido contrário, se a contestação da Fazenda Pública nega a conduta culposa ou dolosa do seu agente a fim de tentar se esquivar da obrigação de reparar o dano, não haverá motivo para se tolerar a denunciação à lide, até mesmo por uma questão de lealdade processual para com o autor da ação e com o próprio Judiciário. Ora, se o próprio Estado nega a conduta ilícita do seu funcionário, como pode tentar responsabilizá-lo simultaneamente na mesma ação, valendo-se do artigo 70, inciso III, do Código de Processo Civil? Detectada a contrariedade entre os fundamentos da contestação estatal e da denunciação à lide, o juiz deve indeferir a intervenção do terceiro na lide, isto é, do agente público litisdenunciado, também em homenagem aos princípios da lealdade e da boa-fé, que igualmente vinculam o Estado.
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
1. MACIEL, Daniel Baggio. A Responsabilidade Patrimonial do Estado pela Atividade Jurisdicional. São Paulo: Editora Boreal, 2006.